As linhas com se cose Santo Egídio
Factos são factos. Têm todos uma importância relativa mas não devem ser minimizados. Porque, qualquer que seja a sua dimensão, tendem a aproximar-se de outros factos para criarem novos sistemas. Vem isto a propósito do recente empenhamento do Vaticano na defesa da paz como solução para o conflito iraquiano. O silêncio da Cúria era de facto insuportável. A Igreja rompeu-o, agora que a guerra já está claramente decidida. Embora seja evidente que o aparelho diplomático do Vaticano é em todo o mundo o mundo o mais poderoso dos embaixadores. Mas nos anos recentes, enquanto os perigos se avolumavam na área do petróleo, o Vaticano não jogou na balança o maior peso do seu poder. Prudentemente, falou na paz interior das almas e foi demonstrando simpatia pelo lado americano. Uma posição flutuante que, ainda recentemente, terá conduzido o cardeal-patriarca a justificar as posições belicistas do governo português por resultarem, em sua opinião, de uma «dinâmica de alianças». E foi, ao que parece, justamente nesse plano, que teve lugar há poucos dias na RTP2 e num espaço «cultural», uma mesa-redonda em que intervieram o laico dr. Mário Soares; o perito em humanidades D. José Policarpo; e o chefe da democracia paralela do Vaticano e da Comunidade de Santo Egídio, prof. Andrea Riccardi. A Comunidade de Santo Egídio merece, aliás, duas linhas de apresentação. Até porque Riccardi tembém é conselheiro do Papa e colaborador íntimo do cardeal Ratzinger.
Santo Egídio mergulha as suas raízes no Movimento Comunhão e Libertação-CL, organização católica ultrafundamentalista liderada, em Portugal, pelo p. João Seabra. O CL foi criada em Itália (Milão), na década de 60, pelo padre beneditino Luigi Guissano, membro do Opus Dei e gestor de uma importante casa editorial, a Mondatori, logo a seguir adquirida por Silvio Berlusconi que a integrou numa das suas «holdings». Publicamente, o CL apresentou-se como o resultado de uma dissidência do Opus Dei. Tempos passados (uma dezena de anos depois), a mesma metodologia foi utilizada na constituição da Comunidade de Santo Egídio. Como reacção aos chamados «desvios de esquerda» da CL, um grupo de militantes conduzido pelo prof. Andrea Riccardi, da Universidade de Roma, abandonou o movimento e instalou-se numa área situada entre a política e a religião. Verificou-se, então, uma importante redistribuição das tarefas sóciocaritativas da Igreja, com base na crescente importância reconhecida à especificidade pastoral: a Comunidade de Santo Egídio ficou, a partir de então, com uma autoridade determinante nas pastorais da Juventude, da Acção Social e na condução das diplomacias paralelas do Vaticano. Por diplomacia paralela, entende-se uma prática que é normal na vida eclesiástica: o poder político da Igreja afirma-se segundo uma dada linha de valores enquanto que, simultaneamente, organizações confessionais acima de qualquer suspeita promovem, paralelamente, pressões e influências contrárias às da linha oficial do Vaticano mas identificadas com os mesmos objectivos. O método permite à Igreja alargar o seu campo de intervenção e, ao mesmo tempo, garante-lhe uma grande maleabilidade de acção. «Somos a diplomacia paralela do Vaticano!», declaram os diplomatas-catequistas de Riccardi, já célebres pelos êxitos alcançados nas mediações de conflitos como os da Argélia, Moçambique, Guatemala, Líbano, Burundi ou nas intrigas do poder que abriram brechas nos regimes socialistas. Com Santo Egídio chega, primeiro, a paz e a reconciliação; logo a seguir, o FMI, a dependência política e económica, as impiedosas revisões constitucionais, o abandono dos ideais. Ou seja, avança a globalização capitalista e o imperialismo político e religioso.
Não é certamente por acaso que Santo Egídio acentua, neste preciso momento de crises, a sua presença em Portugal. Todos os nossos olhares se fixam em Bagdad. A paz e a guerra não são já simples jogos verbais. O povo divide-se entre a decepção e a esperança da mudança. Reforcemos a nossa resistência. A defesa da paz está ao nosso alcance. Dizem os camaradas norte-americanos: «Não à guerra. Sim à luta de classes!». Calmamente recordemos Engels: «Toda a sociedade velha transporta nos seus flancos uma nova sociedade!»