O ano da pedofilia
Talvez nunca antes o telenoticiário acerca do Caso da Casa Pia se assemelhara tanto a uma telenovela, à estratégia de construção que é típica desse género e mantém o espectador suspenso de uma dúvida estimulante de dia para dia, de episódio para episódio. Não, é claro, que esse resultado decorresse de uma premeditação: não me parece que o dr. Rui Teixeira, apesar de alguma vulnerabilidade que por vezes parece ter perante o fascínio do poder mediático, seja propriamente uma vocação como autor de TV. Mas aquela expectativa sucessivamente adiada acerca do destino imediato de Jorge Ritto, e assim ao longo de dias, esteve perfeitamente dentro do clima de «suspense» permanente que é típico do modelo. A única fragilidade da semelhança era que, na verdade, não seria difícil prever, em face do que se sabe ou julga saber-se, qual iria ser a decisão do juiz. Mas não é de afastar a possibilidade de que, aqui ou ali, e muito especialmente na cabeça do detido, a expectativa adquirisse a coloração da esperança, e nesse quadro a prolongada espera pareceu tornar-se digna da assinatura de um Hitchcock ainda que não britânico, apenas de Torres Vedras.
Contudo, este episódio quase minúsculo (excepto decerto para quem o protagonizou) só tem todo o seu significado no contexto da importância de primeiríssima grandeza que a pedofilia denunciada na Casa Pia teve durante o ano que termina agora, na Comunicação Social em geral e na televisão em particular. Talvez tivesse de ser assim porque uma estação de TV, a SIC, esteve na denúncia pública inicial, de parceria com o semanário «Expresso» que, como se sabe, é filho do mesmo pai e certamente da mesma mãe. Mas o filão telenoticiaresco que o caso representou transbordou para todas as estações, e não parece que alguma delas tenha ficado isenta do pecado de excesso, de exploração da vertente mórbida e parola de enorme parte do telepúblico. Foi assim nas primeiras semanas, e pode alegar-se que o fragor do escândalo e o envolvimento de gente conhecida justificou a voracidade com que foram explorados os nossos olhos e ouvidos. Porém, não apenas as semanas deixaram de ser as primeiras como se tornou cada vez mais verosímil que a gula comercialona podia não explicar que o escândalo da Casa Pia se mantivesse como o grande tema dos serviços noticiosos da TV. É que, embora o crime da pedofilia seja sem a menor dúvida de uma gravidade extrema, a verdade é que há mais crimes, mais criminosos além dos pedófilos, mais País além da Rua dos Jerónimos, mais vida, mais mundo. E, quanto a boa parte dessa mesma realidade, anda a televisão sempre muito esquecida e, o que porventura é pior, muito míope.
O azar do intendente
O caso é que decorreu um ano e na informação que a TV portuguesa nos deu a pedofilia foi quase tudo, designadamente no impacto emocional que produziu nos telespectadores, e o resto quase nada. Muitas vezes fico a cismar se, sem a pedofilia, as malfeitorias graves que o governo tem perpetrado não teriam tido outra ressonância e desencadeado rejeições ainda maiores e mais generalizadas. Alguém escreveu, um dia destes, que a pedofilia foi a sorte grande que saiu a alguma comunicação social. Eu direi, já agora, que também foi uma sorte grande que saiu ao governo, tal e tanta que até lhe serviu de arma contra o PS, cujos militantes chegaram a estar à beira de serem considerados uma cambada de pedófilos. Os comunistas ficaram a salvo disso, talvez porque, sendo conhecido o seu hábito de devorarem crianças ao pequeno almoço, é óbvio que não ganharam o costume de posteriormente se servirem delas para outros fins. Quanto aos partidos de direita, parecem puros nessa repugnante matéria. Mesmo nos Açores, onde há abundantes indícios de pedofilia. Mesmo na Madeira, onde os pedófilos em tempo identificados eram todos estrangeiros. Diga-se, já agora, que no continente, com tantos internatos que por aí há de norte a sul, seminários ou não, pedofilia só mesmo na Casa Pia. Azar póstumo do intendente Pina Manique.
Porém, uma coisa parece inevitável: um dia, o processo da pedofilia na Casa Pia há-de chegar ao fim, e os telespectadores ficarão libertos da hipnose que a TV lançou sobre eles servindo-se deste caso. Então, haverá quem olhe em volta, como estremunhado. Reparará como entretanto o desemprego cresceu, a miséria alastrou, os apoios estatais a doentes e desempregados minguaram, algumas imposturas se cristalizaram como verdades. O Partido Comunista resistiu e sobreviveu apesar de praticamente expulso dos media salvo quando se trata de caluniá-lo. E, então, aos estremunhados será necessário recuperar a lucidez e a consciência das coisas.
Contudo, este episódio quase minúsculo (excepto decerto para quem o protagonizou) só tem todo o seu significado no contexto da importância de primeiríssima grandeza que a pedofilia denunciada na Casa Pia teve durante o ano que termina agora, na Comunicação Social em geral e na televisão em particular. Talvez tivesse de ser assim porque uma estação de TV, a SIC, esteve na denúncia pública inicial, de parceria com o semanário «Expresso» que, como se sabe, é filho do mesmo pai e certamente da mesma mãe. Mas o filão telenoticiaresco que o caso representou transbordou para todas as estações, e não parece que alguma delas tenha ficado isenta do pecado de excesso, de exploração da vertente mórbida e parola de enorme parte do telepúblico. Foi assim nas primeiras semanas, e pode alegar-se que o fragor do escândalo e o envolvimento de gente conhecida justificou a voracidade com que foram explorados os nossos olhos e ouvidos. Porém, não apenas as semanas deixaram de ser as primeiras como se tornou cada vez mais verosímil que a gula comercialona podia não explicar que o escândalo da Casa Pia se mantivesse como o grande tema dos serviços noticiosos da TV. É que, embora o crime da pedofilia seja sem a menor dúvida de uma gravidade extrema, a verdade é que há mais crimes, mais criminosos além dos pedófilos, mais País além da Rua dos Jerónimos, mais vida, mais mundo. E, quanto a boa parte dessa mesma realidade, anda a televisão sempre muito esquecida e, o que porventura é pior, muito míope.
O azar do intendente
O caso é que decorreu um ano e na informação que a TV portuguesa nos deu a pedofilia foi quase tudo, designadamente no impacto emocional que produziu nos telespectadores, e o resto quase nada. Muitas vezes fico a cismar se, sem a pedofilia, as malfeitorias graves que o governo tem perpetrado não teriam tido outra ressonância e desencadeado rejeições ainda maiores e mais generalizadas. Alguém escreveu, um dia destes, que a pedofilia foi a sorte grande que saiu a alguma comunicação social. Eu direi, já agora, que também foi uma sorte grande que saiu ao governo, tal e tanta que até lhe serviu de arma contra o PS, cujos militantes chegaram a estar à beira de serem considerados uma cambada de pedófilos. Os comunistas ficaram a salvo disso, talvez porque, sendo conhecido o seu hábito de devorarem crianças ao pequeno almoço, é óbvio que não ganharam o costume de posteriormente se servirem delas para outros fins. Quanto aos partidos de direita, parecem puros nessa repugnante matéria. Mesmo nos Açores, onde há abundantes indícios de pedofilia. Mesmo na Madeira, onde os pedófilos em tempo identificados eram todos estrangeiros. Diga-se, já agora, que no continente, com tantos internatos que por aí há de norte a sul, seminários ou não, pedofilia só mesmo na Casa Pia. Azar póstumo do intendente Pina Manique.
Porém, uma coisa parece inevitável: um dia, o processo da pedofilia na Casa Pia há-de chegar ao fim, e os telespectadores ficarão libertos da hipnose que a TV lançou sobre eles servindo-se deste caso. Então, haverá quem olhe em volta, como estremunhado. Reparará como entretanto o desemprego cresceu, a miséria alastrou, os apoios estatais a doentes e desempregados minguaram, algumas imposturas se cristalizaram como verdades. O Partido Comunista resistiu e sobreviveu apesar de praticamente expulso dos media salvo quando se trata de caluniá-lo. E, então, aos estremunhados será necessário recuperar a lucidez e a consciência das coisas.