Em Itália, 19 soldados regressados do Iraque foram internados, com doença desconhecida. Por cá, um militar que prestou serviço na Bósnia está hospitalizado desde 2003 com uma fibrose pulmonar e espera por um transplante de ambos os pulmões. Separados no tempo e no espaço, ambos os casos podem ter uma causa comum: a exposição ao urânio empobrecido, existente em munições utilizadas pelos «libertadores» exércitos norte-americano e inglês nas várias guerras de agressão de que foram – e são! – protagonistas. Mas estes exemplos, reveladores, são uma gota no oceano.
O internamento dos carabinnieri italianos regressados do Iraque, que partilhavam a missão e o quartel com o contingente português em Nassíria, e o caso do soldado português (que cumpriu missão na Bósnia) internado com graves problemas pulmonares trazem novamente à tona a questão da utilização pelas forças militares do imperialismo deste tipo de armamento.
O urânio empobrecido fez a sua aparição em grande escala na primeira Guerra do Golfo. Militares e civis envolvidos na operação – ou apanhados por ela – foram afectados por sintomas comuns: problemas respiratórios, doenças raras dos aparelhos digestivo ou renal, síndromas de deficiência imunológica, desordens neurológicas, cancros e leucemias. Em muitos casos, é nas crianças que se revelam os mais graves sintomas. Muitas nascem com graves alterações genéticas traduzidas em deformações, cancros precoces, doenças raras.
Estima-se que um terço dos militares e civis envolvidos nesta guerra tenham desenvolvido, mais tarde ou mais cedo, um conjunto de disfunções e doenças, designado por «síndroma do Golfo». Vários milhares terão morrido.
Também na Bósnia e na Jugoslávia, onde a utilização do urânio empobrecido foi igualmente frequente, sucederam situações semelhantes. A «síndroma dos Balcãs», como ficaram conhecidas as doenças – em tudo semelhantes às surgidas no Iraque – ocorridas nos militares que prestaram serviço em mais esta guerra, fez já um sem número de vítimas em vários países. À memória vem o cabo português Hugo Paulino, que morreu em Março de 2000, depois de regressar da sua missão na Bósnia.
Em 2003, as armas com urânio regressam ao palco da estreia, voltando a cair – mas ainda em maior número e com mais violência – sobre as cidades e aldeias do Iraque e as suas populações. Apesar da intensidade dos ataques, e das desastrosas consequências para as populações, poucas vezes este assunto é manchete nos jornais norte-americanos ou europeus. Interesses mais altos se levantam, os do complexo-militar industrial, que aumentou exponencialmente as suas receitas nestes últimos anos, tão férteis em «guerras libertadoras».
Continua a matar muito para além da guerra
Urânio é crime contra a HumanidadeBem podem as autoridades negar qualquer relação entre as «estranhas doenças» ocorridas em tantos militares e civis envolvidos nas guerras de agressão ao Iraque ou à ex-Jugoslávia, que não convencem. As coincidências são por demais evidentes. A começar pela relação directa entre as zonas mais afectadas pela utilização deste tipo de armamento e a proveniência dos doentes.
Mas para muitos sectores que contestam a utilização destas armas, a relação é clara e reveladora da estratégia de guerra do imperialismo. Se dúvidas ainda existissem acerca da «guerra limpa» ou das motivações «humanitárias» das intervenções, a utilização do urânio empobrecido arrasa-as por completo.
Ramsey Clark, ex-ministro da Justiça dos Estados Unidos, está – juntamente com os seus companheiros da International Action Center (IAC) – entre os mais enérgicos activistas contra a utilização de munições contendo urânio empobrecido (UE). Em 1996, o IAC (ver www.iacenter.org) promoveu uma conferência em Nova Iorque sobre as consequências da utilização deste tipo de armamento e os depoimentos dos participantes foram depois reunidos no livro Depleted Uranium – Metal of Dishonour (Urânio Empobrecido – o Metal da Desonra). Alguns dos depoimentos são altamente reveladores.
O médico austríaco Siegwart-Horst Guenter dedicou-se ao estudo das consequências do contacto dos seres humanos com os fragmentos de UE e não tem dúvidas. «Os resultados dos meus estudos (realizados no Iraque) revelam semelhanças com os quadros clínicos recentemente descritos pela designação “síndroma da Guerra do Golfo” em soldados americanos e britânicos, e nos seus filhos. As malformações congénitas provocadas por defeitos genéticos em crianças americanas e iraquianas são idênticas» (pp. 167-168).
Ashraf El-Bayoumi, chefe da Unidade de Observação do Programa Alimentar Mundial da ONU, entre Março de 1997 e Maio de 1998, também aponta a relação entre as doenças e o UE. «Os resultados duma pormenorizada investigação epidemológica e clínica efectuada por Al-Ani da Escola Médica de Bagdad, relativa a pessoal militar (todos homens) expostos ao UE mostra claramente os efeitos tóxicos radiológicos e químicos do urânio.» E prossegue: «Os resultados evidenciaram claramente uma alteração dos padrões de diferentes tipos de cancro, bem como um aumento geral de cancros, em particular leucemias, cancros nos pulmões, ossos, cérebros, gástrico-intestinais e do fígado.» Para El-Bayoumi, uma das mais importantes revelações do estudo é a «diferença entre os padrões de doenças cancerosas entre aqueles que estiveram expostos a explosões de UE e aqueles que não estiveram».
A utilização destas armas afigura-se, assim, como um crime contra a Humanidade. Com um tempo médio de 4,5 milhões de anos, o UE (que contamina já águas e solos do Iraque, Bósnia, Sérvia e Afeganistão) continuará a matar muito para além do fim das guerras. O imperialismo será derrotado, mais tarde ou mais cedo. Mas deixa a sua assinatura mortífera muito para lá desse dia.
Silêncios assassinosApesar das evidências, nunca as autoridades dos países agressores reconheceram a relação existente entre a utilização do urânio empobrecido e as doenças e as mortes ocorridas (em militares e, sobretudo, entre as populações civis das regiões atacadas). Nem as dos países produtores e utilizadores (os Estados Unidos e o Reino Unido) nem as dos seus lacaios menores, como, nestes casos, Portugal e Itália.
No caso dos 19 carabinnieri de Itália, a informação do seu internamento foi avançada por um oficial de alta patente desta força, mas logo negada pelo subsecretário da Defesa daquele país, Salvatore Cicu.
Por cá, segundo o Correio da Manhã, que divulgou a situação do ex-militar, o Ministério da Defesa afirma estar a «acompanhar a situação» de Pedro Almeida, nada dizendo, porém, sobre a sua relação com a utilização do armamento com urânio empobrecido. Aquando da morte de Hugo Paulino, as autoridades portuguesas também nunca reconheceram esta ligação, mas – talvez para calar a corajosa e insistente contestação movida por seu pai, Luís Paulino – acabaram por indemnizar a família, admitindo que o falecimento do jovem cabo «resultou de uma doença adquirida em serviço». E nem mais uma palavra.
Esta atitude das autoridades não surpreende. Silenciamento é a menos grave das acusações que se lhes pode fazer em todo este processo. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, vários dos militares que adoeceram após o regresso das suas missões foram dispensados do exército e abandonados à sua sorte, já que as autoridades não reconheciam qualquer ligação entre as suas doenças e as campanhas militares. E a real dimensão do drama, nomeadamente para as populações do Iraque, da ex-Jugoslávia e do Afeganistão, está ainda por apurar.
Esconder a todo o custoA perseguição aos cientistas que rompessem o silêncio sobre este tema foi outra das formas de acção das autoridades norte-americanas. Em 2001, o jornal italiano Liberazione publicava uma entrevista com Asaf Durakovic, cientista norte-americano que trabalhara para o Pentágono. O cientista conta que em 1995 foi despedido do Pentágono por ter defendido que o urânio empobrecido provoca cancros. Tendo analisado vários casos de militares doentes, Durakovic emitiu o seu parecer: todos os que tinham cancro apresentavam níveis significativos de urânio empobrecido. Mas a verdade não interessava ao Pentágono e ao complexo militar-industrial. O cientista foi despedido, as amostras «desapareceram» e o caso foi encerrado. E este é apenas um de muitos casos.
Terror convencionalNa melhor tradição dos criminosos bombardeamentos nucleares de Hiroshima e Nagasaki, o imperialismo norte-americano continua a desenvolver armamento cada vez mais sofisticado, e mortífero. E manda às urtigas quaisquer separações que subsistissem entre o armamento dito convencional e não convencional.
Entre as armas utilizadas pelo exército norte-americano, só as ditas «convencionais», contam-se algumas particularmente assassinas. Todas elas foram utilizadas nas últimas agressões militares imperialistas.
- Bombas de fragmentação – destinadas a matar e não a destruir. Cada bomba lançada contém no seu interior dezenas de bombas incendiárias, granadas e minas, que se espalham para explodir mais tarde, durante os períodos de acalmia, quando as populações voltam a sair à rua.
- Bombas explosivas ar-fuel – desenvolvidas na década de 60, durante a Guerra do Vietname. Destinadas a destruir abrigos subterrâneos e a desflorestar o terreno. A deflagração desta bomba provoca uma enorme e fulgurante bola de fogo e uma intenssíssima onda de choque. Estruturas, árvores e pessoas são imediatamente reduzidas a cinzas. O seu raio de acção é elevado, podendo provocar queimaduras graves e intoxicações mesmo a grandes distâncias.
- MOAB – a «mãe de todas as bombas», como «carinhosamente» foi baptizada, é uma super-bomba de alta potência (a maior arma convencional existente). Com 10 toneladas e comandada via satélite, a sua potente detonação origina a ascensão de uma coluna de gás e poeira semelhante a uma explosão nuclear.
- «Bombas sujas» – são bombas com carga explosiva convencional cujo propósito é a dispersão de substâncias radioactivas. O seu efeito sente-se no imediato e a prazo mais ou menos longo, devido à acumulação no organismo humano de substâncias tóxicas e radioactivas. Os projecteis de urânio empobrecido, apesar de conterem carga convencional, são, de facto, deste tipo.
Gustavo Carneiro