- Nº 1606 (2004/09/9)
Festa do Livro

Milhões de páginas à espera do leitor

Festa do Avante!

Entra-se na tenda branca, com o tecto em cone, como a imaginação nos diz que eram os chapéus das personagens das «Mil e Uma Noites». Será que essa obra existe na Festa do Livro? É provável, são aos milhares! Escolhe-se uma mesa, folheia-se um livro, outro, mais outro, olha-se para o preço – «Hum, não é nada caro!» –, recebe-se um encontrão do leitor ao lado, que, mais distraído, avança com os olhos nas capas à sua frente, contorna-se as pessoas o melhor possível e encontra-se «O Livro de Marco Pólo». As «Mil e Uma Noites» devem andar perto!
É sábado à tarde e uma voz anuncia o início da apresentação do último livro de António Dias Lourenço, «Saudades… não têm conto!». Vamos espreitar. A escritora Alice Vieira conta que leu o livro ainda em provas e que leitura equivaleu a um «soco no estômago». «Não é um livro para crianças, mas para adultos, uma obra de grande força», afirma.
Escrita por um pai que está preso pela sua actividade política e que não pode acompanhar o filho doente, esta obra é construída pelos postais que lhe envia, repletos de palavras meigas, conselhos e desenhos coloridos. Toda a correspondência leva o carimbo da censura, o que obriga o pai a mandar recados nas entrelinhas: «Escrevo-te todos os dias. Porque não recebes?»
Em todos os postais há preocupação pedagógica. «Fala na importância de estudar, nas virtudes do ensino, na necessidade de lavar bem a cara, de fazer ginástica, de calçar as botas sem ajuda», sublinha Alice Vieira. «Este é um documento muito importante. Estas coisas devem ser divulgadas para se conhecer a vida durante a ditadura», acrescenta.
Dias Lourenço sublinha que o livro pretende transmitir uma parte do passado histórico de Portugal, numa apresentação profundamente emotiva e repleta de recordações dos tempos da prisão. «Este livro não é uma peça de literatura ou uma obra de arte», salienta o antigo dirigente do PCP, mas será, sim, uma prova de amor.
Levantamo-nos ou não vale a pena? Só se for para ver a colecção de fotografias de Carlos Gil sobre o 25 de Abril penduradas nas paredes. Vai já começar a apresentação de «Sonhos de Poeta, Vida de Revolucionário», de Manuel Pedro, outro antigo dirigente comunista, que diz que não se revê no mundo de hoje, onde «os seres que dominam são carcereiros de si próprio, espantalhos de um passado que já fede, o capitalismo putrefacto».
Falando do PCP, Manuel Pedro afirma que o futuro se apresenta cheio de complexas dificuldades, mas lembra que «sempre tivemos problemas pela frente, mas nunca perdemos de vista a revolução». «A unidade interna, profunda e consciente, é fundamental para os ultrapassar», acrescentou. O autor assume que o livro inclui muitos «recados» e que o seu conteúdo poderá ser polémico. «Escreve-se pouco sobre a vida clandestina e a imensidade dos crimes do fascismo. Se os comunistas não o fazem, quem o fará por nós?», questiona.
José Casanova afirma que o relato das experiências de militantes são pedaços da história do PCP e da resistência anti-fascista, hoje ainda mais importante dada a tentativa de «revisão despudorada da história, com o objectivo de golpear a democracia e fazer passar com mais facilidade a revisão da Constituição, as novas leis laborais, a lei dos partidos e a perda de autonomia do País».
Os aplausos prolongam-se durante minutos. É anunciada a presença de vários autores para sessões de autógrafos. As bichas formam-se. Vamos dar mais uma volta, procurar mais umas obras, ler uns excertos aqui e ali, escolher pelo menos um livro para nos entretermos no regresso a casa.

Isabel Araújo Branco