A memória e o retrato

Correia da Fonseca
Está no remodelado elenco da TV Cabo um novo canal, o RTP Memória, cujo conteúdo será uma espécie de retrospectiva seleccionada de quanto pela RTP foi transmitido ao longo de uma existência que já não é tão curta quanto por vezes parece a alguns: com nascimento oficial em Março de 57, a estação pública de televisão vai a caminho do meio-século, tendo vivido 17 anos sob o poder fascista e os restantes 30 no país libertado. Acrescente-se que dos tais dezassete anos só onze corresponderam ainda à presença de Salazar no exercício da ditadura, pois foi no Verão de 68 que a histórica cadeira do forte de S. João do Estoril deu de si, abrindo caminho ao consulado de Marcelo Caetano. Sendo assim, pareceu-me curioso e até um pouco surpreendente que o «spot» com que a RTP anunciou ao país e porventura ao mundo o seu novo canal mostrasse como primeira imagem uma fotografia do ditador. E diga-se, já agora e porque dizê-lo não será inútil, que se trata de um retrato em que Salazar está muito bem, apenas o rosto e não de corpo inteiro de modo a que se pudesse ver as mãos e verificar se elas estariam ou não manchadas de sangue. Significa isto que quem olhar aquela imagem e pouco ou nada saiba de quem foi Salazar e do que foi o Salazarismo, ou só o saiba através da vulgata apologética ou, na melhor das hipóteses, desculpabilizante, que está cada vez mais na moda e na prática dos media dominantes, fica com meio caminho andado para engrossar o já não dispiciendo grupo de saudosos do ditador, conscientes ou não do significado efectivo do que dizem ou do que fazem. Aquela imagem escassamente adequada para introduzir um novo canal que decerto não foi planeado como lugar de propaganda do fascismo, o que aliás até seria violador da Constituição (que, coitada, já deve estar habituada a abundantes violações sem que com isso muito se importe quem mais devia importar-se) funciona como tal, ao menos um pouco, o que é, digamos, interessante.

Sonhos com nevoeiro dentro

Vamos a ver ser nos entendemos (esta maneira de dizer estou eu a plagiar de um histórico discurso do ditador, do «velho abutre», como lhe chamou um dia, em poema, Sophia de Mello Breyner): não estou a acusar a RTP, ou alguém por ela, de ter introduzido a tal foto no limiar do «spot» em questão com o premeditado objectivo de fazer a promoção publicitária de Salazar: aquilo até pode ter caído ali pelo improvável acaso de ter sido a primeira imagem que veio à mão ou a primeira ideia a saltar num crânio. Terá sido, então, um mero caso de ingenuidade, de falta de avaliação de significados e consequências. Mas trata-se, nesse caso, de uma ingenuidade intrigante, lamentável e inevitavelmente suscitadora de suspeitas. Bem se sabe que desde há muito há por aí quem, sabendo embora que o ditador se chamava António e não Sebastião, ande a sonhar com uma manhã de nevoeiro em que não apareça a criatura tal como era, de botas e manual de gestão financeira elementar debaixo do braço, mas sim reincarnado numa outra aparência humana. De facto, há qualquer coisa de metempsicose no culto saudoso do salazarismo, por muito que isso da transmigração das almas não seja correntemente assumido. E, ao contrário do que ao primeiro exame se possa supor, as saudades de Salazar não têm sobretudo a ver com a nostalgia dos equilíbrios orçamentais (então, como quase sempre, à custa da maior pauperização das camadas populacionais mais débeis e em especial dos que trabalham e pagam inevitáveis impostos), mas sim com outros factores: autoritarismo de cassetete em punho, polícia política para caçar os comunistas e todos quantos com eles se pareçam. É neste quadro mais amplo, a que poderiam e talvez devessem ser acrescentados outros parâmetros, que se situam as saudades de Salazar e do seu «regime autoritário», como há dias foi gentilmente designado pelo senhor Presidente da República. Este é o contexto em que nos surgiu diante do nariz aquele «spot» e aquele retrato. Porque a imagem de Salazar é simbólica do passado nacional e, portanto, é elemento da nossa memória? Admitamo-lo, embora se deva então lembrar que não o é tanto do passado da RTP, que com ele apenas coexistiu durante os tais onze anos num total de quarenta e sete. Mas para evocação desses anos poderiam surgir outras imagens se porventura se quisesse evocar outras memórias. As imagens dos resistentes, alguns dos quais assassinados pela «ordem» do ditador. Se essas parecessem excessivas, porventura indigestas para quem na RTP faz escolhas, haveria imagens de Humberto Delgado ou, no mínimo, de quem não desencadeasse associações de ideias politizadas. Aconteceu, porém, que saiu o retrato de Salazar. Ainda não se me sumiu a vontade de saber ao certo o objectivo e a razão de tão feia escola.


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