Mais da mesma receita desastrosa
Socialmente injusto, pouco transparente, nada credível e incapaz de responder às necessidades e aos problemas do País, eis, em síntese, na perspectiva do PCP, alguns dos traços fundamentais que marcam o Orçamento do Estado para 2005. Uma avaliação muito negativa que só poderá traduzir-se no voto contra da bancada comunista em votação a realizar hoje, ao final do dia, com a qual se encerra a discussão na generalidade iniciada ontem em plenário.
Um mau orçamento a merecer um inequívoco voto contra
Na véspera do debate, em entrevista ao Avante!, o líder parlamentar comunista, Bernardino Soares, explica com detalhe as razões que justificam as críticas e a oposição firme do PCP às opções e prioridades do Governo.
O PCP, numa primeira reacção, criticou o OE por não promover políticas de maior crescimento económico, maior coesão social e de combate ao desemprego. Confirma-se esta ausência de resposta às necessidades do País?
Confirma-se em absoluto. Este orçamento continua a não ser o instrumento de desenvolvimento de que o país precisa. É um orçamento em que se prevê a manutenção de níveis elevados de desemprego, de uma injusta distribuição da riqueza criada, de uma insuficiente aposta no investimento reprodutivo, isto é, com efeitos concretos na melhoria da situação económica. É afinal de contas um orçamento baseado num modelo de desenvolvimento assente em baixos salários, em fracas qualificações, em pouco investimento na modernização científica e tecnológica e que manterá o nosso país e a nossa economia numa situação de crescente subcontratação e dependência externa. É mais da mesma receita dos governos PSD/CDS-PP.
Com o previsível crescimento económico inferior ao dos parceiros europeus é certo que continuará a manter-se o processo de divergência com a União Europeia.
De facto vão longe os tempos em que Durão Barroso, na campanha eleitoral, prometia um crescimento de dois pontos percentuais acima da média europeia. Na verdade temos vindo a divergir da média europeia nos últimos anos e esse cenário mantém-se para 2005. Confirma-se que este governo, numa altura em que de facto existia uma crise económica, o que fez foi acrescentar crise à crise e aprofundá-la de forma a que agora a recuperação será certamente mais lenta e menos pronunciada. É preciso lembrar que tivemos em Portugal o maior aumento da taxa de desemprego e uma das mais prolongadas recessões da União Europeia.
Tem-se falado muito da falta de rigor e credibilidade do documento do Governo, nomeadamente no que se refere à evolução do PIB e da taxa de inflação. Em que se fundamenta esta acusação?
O governo utiliza os velhos truques de sempre para dourar a pílula do orçamento e condicionar as negociações salariais com os trabalhadores da Administração Pública. Quanto ao crescimento do PIB, a previsão de crescimento é de 2,4%, mas sabemos que no nosso país o crescimento do PIB depende em boa medida do investimento público, onde na verdade se verifica neste orçamento um aumento das cativações, o que pode pôr em causa aquela previsão. Quanto à inflação é o costume. O governo apresenta um nível de inflação abaixo do que de forma realista se pode prever para negociar os aumentos salariais e proceder a todas as actualizações de escalões do IRS, de deduções ou de bonificações nessa base. Na prática elas vão ser feitas a 2%, que é o valor da inflação prevista ou até menos em muitos casos, o que significa que as pessoas serão depois prejudicadas, como já aconteceu o ano passado e em anos anteriores, quando se verificar uma inflação superior.
Têm vindo a lume, nomeadamente, as denúncias quanto ao recurso a formas de engenharia financeira e desorçamentação...
Essa é outra área cheia de truques e artimanhas. É que hoje a questão do cumprimento do défice de 3% do PIB é uma ficção porque ele é sempre superior. O que acontece é que o governo lança sistematicamente mão de recursos extraordinários à medida das suas necessidades e faz do défice o que quiser, pelo menos enquanto existirem esses recursos. No final de 2003 tivemos a titularização das dívidas fiscais e à segurança social, vendidas por preço inferior ao seu valor ao Citygroup. Este ano vamos ter certamente a integração de um ou mais fundos de pensões de empresas públicas. Em 2005 temos já prevista a desorçamentação de 600 milhões de euros para novos hospitais S.A. e de mais 550 para o Instituto de Estradas de Portugal, também transformado em S.A. e para além disso a venda de mais património de Estado que pode chegar a 1000 milhões de euros. Sobre isto é preciso dizer que esta venda incluirá edifícios onde estão sediados serviços públicos, que passarão a pagar renda. Isto é, o Estado deixa de ser proprietário para passar a pagar renda, e até hoje o governo não disse quanto se vai gastar nestas rendas, só para permitir a antecipação de receitas. Mas não se pense que estas manobras orçamentais têm apenas como motivação o cumprimento do défice. À boleia disso vão-se satisfazendo interesses, como os dos grupos bancários que vão ficar com os imóveis que o governo vai vender em saldo.
Pelos vistos é a manutenção da obediência cega ao sacrossanto pacto de estabilidade?
De facto os governos PSD/CDS-PP nunca pugnaram por uma alteração do pacto de estabilidade que permitisse pelo menos uma adaptação das suas condições à realidade de cada país. O governo fez o costumeiro papel de bom aluno mas o país não lucrou nada com isso. Viu agravada a crise, comprometido o seu desenvolvimento, não viu nenhuma consolidação orçamental a não ser à base de truques como aqueles que referi e agora até se prevê a violação de um outro critério do pacto de estabilidade, o da limitação da dívida pública a 60% do PIB.
E quanto à prometida actualização dos salários dos trabalhadores da administração pública: vai ser suficiente para repor a perda do seu poder de compra?
Essa é uma questão central. É que os trabalhadores da administração pública têm sido prejudicados nos últimos anos com a descida real dos seus salários. O governo avança agora com perspectivas, que ainda não concretizou, de aumento superior à inflação. Mas a verdade é que não se vislumbram compromissos em relação à recuperação do poder de compra perdido, sobretudo se tivermos em conta que para o governo a inflação é de 2% o que muito previsivelmente não se verificará na prática. E isso vai certamente reflectir-se igualmente nos salários do sector privado.
Retomando a questão inicial, apesar do anunciado crescimento do investimento público em termos do PIDDAC, parece que afinal também neste capítulo há uns truques contabilísticos, ficando aquém das necessidades do País.
De facto vamos ter em 2005 o segundo aumento das cativações da maioria PSD/CDS-PP. Passam a estar cativadas 21,4% das verbas de investimento, o que significa que na prática, salvo situações excepcionais, não poderão ser gastas um quinto das verbas orçamentadas. Por outro lado foram inscritas como despesas de investimento, despesas correntes, para pagamento de pessoal, de compras, etc. em diversas instituições do ensino superior público por exemplo. Por isso o tão propalado aumento de despesas para investimento em 11% não passa de uma ficção que a realidade dos números rapidamente desmentiu.
Também não se vislumbram, por conseguinte, quaisquer medidas capazes de atenuar as assimetriais regionais?
O investimento continua a ser regionalmente desequilibrado e a não compensar as regiões mais deprimidas, designadamente do interior do país. Aliás a recente decisão de impor portagens em várias vias estruturantes para estas regiões diz bem do que este governo pensa das assimetrias regionais. São para manter. Basta ver aliás o que continuam a fazer ao poder local, que pode ser um instrumento para contrariar assimetrias e promover o desenvolvimento. Continuam a ser impostas restrições inaceitáveis ao poder local que, a manterem-se, levarão à perda de fundos comunitários destinados aos municípios.
A aposta nas privatizações continua a ser igualmente um eixo fundamental da política de direita.
Vai continuar a sangria. Especialmente em empresas de sectores estratégicos como a EDP a GALP e a REN. Fala-se mesmo em aceleração da política de privatizações. Trata-se de deixar nas mãos dos grupos privados sectores fundamentais da economia nacional e empresas que prestam serviços públicos fulcrais. Claro que nesta altura ninguém se lembra do discurso da importância de preservar centros de decisão nacionais, que até o Presidente da República já deixou cair. Para além de estarem nas mãos de grandes grupos económicos privados, estão também cada vez mais condicionadas por poderosos grupos multinacionais. E o ataque é agora também aos sectores sociais como a saúde e a segurança social.
Por tudo o que acabas de expor só há uma conclusão: estamos perante um mau orçamento para os trabalhadores e para o País.
É verdadeiramente um mau orçamento que merece um inequívoco voto contra e que está bem longe da propaganda do governo e de Santana Lopes. Bem pode ele dizer que não quer dar mais sofrimento aos portugueses, porque na verdade a solução para isso é que este governo se vá embora e que a política de direita seja invertida.
Imoralidade fiscal
Falemos do capítulo das receitas: este Orçamento introduz ou não maior justiça fiscal, como apregoa o Governo?
Bom, na verdade o governo continua a manter uma enorme obsessão com a redução da despesa pública, mas não em tudo. Se não vejamos a contratação de boys e girls do PSD e do CDS ou o gasto de 200 milhões de euros em consultadorias, esquecendo-se, ao mesmo tempo, que para equilibrar as contas também se pode aumentar a receita. Para isso bastaria diminuir os benefícios fiscais e possibilidades de programação fiscal de que lança mão o sector financeiro, tributar as mais-valias e apertar a malha ao off-shore da Madeira, o que neste orçamento continua a ser largamente insuficiente.
Na verdade continuam a ser os trabalhadores por conta de outrem a suportar a maior factura fiscal, quer porque não podem fugir nos impostos directos, quer porque são os mais prejudicados com o aumento da cobrança de impostos indirectos, já que por exemplo o governo vai manter o IVA em 19%. Há neste orçamento tímidas alterações, umas no sentido que há muitos anos temos vindo a defender, como é o fim dos benefícios fiscais à compra de PPR’s e produtos semelhantes e outras cujo âmbito está ainda por concretizar. O governo propõe por exemplo uma limitação à utilização de benefícios fiscais pelas empresas, designadamente pela banca, mas não está clarificado quais são os benefícios fiscais abrangidos ou se eles podem ser transferidos para anos seguintes. Quanto à descida das taxas de IRS ela vai ser amortecida pela manutenção de uma taxa de retenção na fonte mais alta do que a taxa efectiva. Isto é, em 2005 já se aplicam aos rendimentos as novas taxas, mas por via das retenções na fonte continuará a descontar-se mais em cada mês, sendo o acerto feito apenas em 2006 na liquidação do imposto. É certo que não é a primeira vez que isso acontece, mas há uma enorme contradição entre a propaganda de Santana Lopes e o que de facto vai acontecer em 2005.
Seja como for é positiva a anunciada intenção de combate à fraude e evasão fiscal. A não se que seja apenas mais uma promessa...
É legítimo suspeitar de tantas boas intenções. Na verdade em todos os orçamentos o governo sempre se compromete com um mais eficaz combate à fraude e evasão fiscal, mas depois na prática pouco se vê. Veremos o que acontece desta vez, porque de facto vivemos no nosso país numa situação de absoluta imoralidade nessa matéria.
Ataque aos sectores sociais
As funções sociais do Estado em áreas tão importantes como é, por exemplo, a educação estão devidamente acauteladas neste Orçamento?
As funções sociais continuam a ser fortemente penalizadas por este governo. A educação em concreto sofre uma diminuição de 1,3% no total, que sobe para 2,2% se considerarmos apenas o ministério da educação que se ocupa designadamente do ensino básico e secundário. É claro que assim nenhum país se desenvolve e que o acesso a uma educação de qualidade fica cada vez mais dependente, com o enfraquecimento da escola pública, dos recursos sócio-económicos de cada um. Até porque os subsídios ao ensino particular sobem mais de 9%.
Queres especificar melhor no que respeita à Segurança Social?
O que se passa na Segurança Social é que o governo está a prosseguir paulatinamente o caminho da sua descapitalização, abrindo caminho a uma crescente privatização. O governo volta a não cumprir a Lei de Bases que a sua maioria aprovou. A lei diz que devem ser transferidos dois pontos percentuais das contribuições dos trabalhadores para o Fundo de Estabilização Financeira. Só quando se verifiquem, segundo a lei, condições económicas adversas, se admite que isso não aconteça. Ora o governo volta a invocar esta cláusula excepcional para 2005. Só que o próprio governo apresenta um cenário de crescimento para o próximo ano, o que é contraditório com aquela justificação.
Quanto às pensões mais baixas, apesar de não haver concretização em relação aos valores de cada uma, já é possível prever que o aumento não será grande, já que a convergência prevista na lei com o salário mínimo nacional – e que só é a 100% para quem tenha mais de 30 anos de descontos – só avança de 61% para 64%. O espantoso é que o ministro garante que em 2006 haverá a convergência total, embora sem nunca concretizar os montantes necessários.
Por outro lado confirma-se o desinvestimento em prestações sociais importantíssimas, como o agora chamado rendimento social de inserção que só cresce em 2005, 3,5%, depois de este ano ter apenas aumentado 0,2% - o que significa uma diminuição real – num tempo de crise acentuada, o que o governo explica com a existência de problemas informáticos.
Confirma-se o que o PCP e a CGTP tinham dito em relação às alterações do subsídio de doença, cujas verbas diminuem no próximo ano cerca de 5%, o que, como não parece ser previsível que isto se deva à melhoria das condições de saúde dos trabalhadores, significa que haverá uma limitação ao recurso a este apoio.
E quanto à saúde?
Na saúde o problema que temos desde logo é que os números apresentados não têm qualquer correspondência com a realidade, são completamente falsos. Basta dizer que o governo prevê um saldo positivo de quase 200 milhões de euros em 2005, ao mesmo tempo que se sabe que os hospitais e os centros de saúde estão subfinanciados e não têm recursos para funcionar condignamente e que os principais credores da saúde reclamam dívidas em atraso no valor de mais de 2900 milhões de euros.
Mas há uma novidade neste orçamento. É que finalmente podemos ter uma ideia de quanto vai custar ao Estado a entrega de 10 novos hospitais aos privados, já que o ministério das finanças apresentou essa informação. São mais de 7400 milhões de euros, ou seja cerca de 1500 milhões de contos, que vamos pagar até 2037.
O que não parece ser nada um bom negócio para o Estado...
A verdade é que sairia muito mais barato ao Estado, mesmo que tivesse que se endividar, construir e gerir ele próprio estes hospitais. A questão é ainda mais grave se dissermos que estes hospitais abrangerão um quarto da população portuguesa, que terá a sua saúde hospitalar entregue aos interesses lucrativos dos privados durante duas a três décadas. O pior é que Bagão Félix já garantiu que, para além do dinheiro do orçamento de Estado, estes hospitais serão pagos aos privados segundo o famoso princípio do utilizador pagador, baseado nos rendimentos declarados ao fisco. Isto significa que por um lado quem está mais doente vai ser mais prejudicado e por outro que se vai transportar para a saúde a injustiça do sistema fiscal. Quanto aos medicamentos mantém-se o injusto sistema de preço de referência nos medicamentos genéricos, que levou a que nos primeiros 7 meses do ano os utentes pagassem mais, nestes medicamentos, 6,7 milhões de euros, sempre que o médico não autorizou a substituição de um medicamento de marca por um genérico.
O PCP, numa primeira reacção, criticou o OE por não promover políticas de maior crescimento económico, maior coesão social e de combate ao desemprego. Confirma-se esta ausência de resposta às necessidades do País?
Confirma-se em absoluto. Este orçamento continua a não ser o instrumento de desenvolvimento de que o país precisa. É um orçamento em que se prevê a manutenção de níveis elevados de desemprego, de uma injusta distribuição da riqueza criada, de uma insuficiente aposta no investimento reprodutivo, isto é, com efeitos concretos na melhoria da situação económica. É afinal de contas um orçamento baseado num modelo de desenvolvimento assente em baixos salários, em fracas qualificações, em pouco investimento na modernização científica e tecnológica e que manterá o nosso país e a nossa economia numa situação de crescente subcontratação e dependência externa. É mais da mesma receita dos governos PSD/CDS-PP.
Com o previsível crescimento económico inferior ao dos parceiros europeus é certo que continuará a manter-se o processo de divergência com a União Europeia.
De facto vão longe os tempos em que Durão Barroso, na campanha eleitoral, prometia um crescimento de dois pontos percentuais acima da média europeia. Na verdade temos vindo a divergir da média europeia nos últimos anos e esse cenário mantém-se para 2005. Confirma-se que este governo, numa altura em que de facto existia uma crise económica, o que fez foi acrescentar crise à crise e aprofundá-la de forma a que agora a recuperação será certamente mais lenta e menos pronunciada. É preciso lembrar que tivemos em Portugal o maior aumento da taxa de desemprego e uma das mais prolongadas recessões da União Europeia.
Tem-se falado muito da falta de rigor e credibilidade do documento do Governo, nomeadamente no que se refere à evolução do PIB e da taxa de inflação. Em que se fundamenta esta acusação?
O governo utiliza os velhos truques de sempre para dourar a pílula do orçamento e condicionar as negociações salariais com os trabalhadores da Administração Pública. Quanto ao crescimento do PIB, a previsão de crescimento é de 2,4%, mas sabemos que no nosso país o crescimento do PIB depende em boa medida do investimento público, onde na verdade se verifica neste orçamento um aumento das cativações, o que pode pôr em causa aquela previsão. Quanto à inflação é o costume. O governo apresenta um nível de inflação abaixo do que de forma realista se pode prever para negociar os aumentos salariais e proceder a todas as actualizações de escalões do IRS, de deduções ou de bonificações nessa base. Na prática elas vão ser feitas a 2%, que é o valor da inflação prevista ou até menos em muitos casos, o que significa que as pessoas serão depois prejudicadas, como já aconteceu o ano passado e em anos anteriores, quando se verificar uma inflação superior.
Têm vindo a lume, nomeadamente, as denúncias quanto ao recurso a formas de engenharia financeira e desorçamentação...
Essa é outra área cheia de truques e artimanhas. É que hoje a questão do cumprimento do défice de 3% do PIB é uma ficção porque ele é sempre superior. O que acontece é que o governo lança sistematicamente mão de recursos extraordinários à medida das suas necessidades e faz do défice o que quiser, pelo menos enquanto existirem esses recursos. No final de 2003 tivemos a titularização das dívidas fiscais e à segurança social, vendidas por preço inferior ao seu valor ao Citygroup. Este ano vamos ter certamente a integração de um ou mais fundos de pensões de empresas públicas. Em 2005 temos já prevista a desorçamentação de 600 milhões de euros para novos hospitais S.A. e de mais 550 para o Instituto de Estradas de Portugal, também transformado em S.A. e para além disso a venda de mais património de Estado que pode chegar a 1000 milhões de euros. Sobre isto é preciso dizer que esta venda incluirá edifícios onde estão sediados serviços públicos, que passarão a pagar renda. Isto é, o Estado deixa de ser proprietário para passar a pagar renda, e até hoje o governo não disse quanto se vai gastar nestas rendas, só para permitir a antecipação de receitas. Mas não se pense que estas manobras orçamentais têm apenas como motivação o cumprimento do défice. À boleia disso vão-se satisfazendo interesses, como os dos grupos bancários que vão ficar com os imóveis que o governo vai vender em saldo.
Pelos vistos é a manutenção da obediência cega ao sacrossanto pacto de estabilidade?
De facto os governos PSD/CDS-PP nunca pugnaram por uma alteração do pacto de estabilidade que permitisse pelo menos uma adaptação das suas condições à realidade de cada país. O governo fez o costumeiro papel de bom aluno mas o país não lucrou nada com isso. Viu agravada a crise, comprometido o seu desenvolvimento, não viu nenhuma consolidação orçamental a não ser à base de truques como aqueles que referi e agora até se prevê a violação de um outro critério do pacto de estabilidade, o da limitação da dívida pública a 60% do PIB.
E quanto à prometida actualização dos salários dos trabalhadores da administração pública: vai ser suficiente para repor a perda do seu poder de compra?
Essa é uma questão central. É que os trabalhadores da administração pública têm sido prejudicados nos últimos anos com a descida real dos seus salários. O governo avança agora com perspectivas, que ainda não concretizou, de aumento superior à inflação. Mas a verdade é que não se vislumbram compromissos em relação à recuperação do poder de compra perdido, sobretudo se tivermos em conta que para o governo a inflação é de 2% o que muito previsivelmente não se verificará na prática. E isso vai certamente reflectir-se igualmente nos salários do sector privado.
Retomando a questão inicial, apesar do anunciado crescimento do investimento público em termos do PIDDAC, parece que afinal também neste capítulo há uns truques contabilísticos, ficando aquém das necessidades do País.
De facto vamos ter em 2005 o segundo aumento das cativações da maioria PSD/CDS-PP. Passam a estar cativadas 21,4% das verbas de investimento, o que significa que na prática, salvo situações excepcionais, não poderão ser gastas um quinto das verbas orçamentadas. Por outro lado foram inscritas como despesas de investimento, despesas correntes, para pagamento de pessoal, de compras, etc. em diversas instituições do ensino superior público por exemplo. Por isso o tão propalado aumento de despesas para investimento em 11% não passa de uma ficção que a realidade dos números rapidamente desmentiu.
Também não se vislumbram, por conseguinte, quaisquer medidas capazes de atenuar as assimetriais regionais?
O investimento continua a ser regionalmente desequilibrado e a não compensar as regiões mais deprimidas, designadamente do interior do país. Aliás a recente decisão de impor portagens em várias vias estruturantes para estas regiões diz bem do que este governo pensa das assimetrias regionais. São para manter. Basta ver aliás o que continuam a fazer ao poder local, que pode ser um instrumento para contrariar assimetrias e promover o desenvolvimento. Continuam a ser impostas restrições inaceitáveis ao poder local que, a manterem-se, levarão à perda de fundos comunitários destinados aos municípios.
A aposta nas privatizações continua a ser igualmente um eixo fundamental da política de direita.
Vai continuar a sangria. Especialmente em empresas de sectores estratégicos como a EDP a GALP e a REN. Fala-se mesmo em aceleração da política de privatizações. Trata-se de deixar nas mãos dos grupos privados sectores fundamentais da economia nacional e empresas que prestam serviços públicos fulcrais. Claro que nesta altura ninguém se lembra do discurso da importância de preservar centros de decisão nacionais, que até o Presidente da República já deixou cair. Para além de estarem nas mãos de grandes grupos económicos privados, estão também cada vez mais condicionadas por poderosos grupos multinacionais. E o ataque é agora também aos sectores sociais como a saúde e a segurança social.
Por tudo o que acabas de expor só há uma conclusão: estamos perante um mau orçamento para os trabalhadores e para o País.
É verdadeiramente um mau orçamento que merece um inequívoco voto contra e que está bem longe da propaganda do governo e de Santana Lopes. Bem pode ele dizer que não quer dar mais sofrimento aos portugueses, porque na verdade a solução para isso é que este governo se vá embora e que a política de direita seja invertida.
Imoralidade fiscal
Falemos do capítulo das receitas: este Orçamento introduz ou não maior justiça fiscal, como apregoa o Governo?
Bom, na verdade o governo continua a manter uma enorme obsessão com a redução da despesa pública, mas não em tudo. Se não vejamos a contratação de boys e girls do PSD e do CDS ou o gasto de 200 milhões de euros em consultadorias, esquecendo-se, ao mesmo tempo, que para equilibrar as contas também se pode aumentar a receita. Para isso bastaria diminuir os benefícios fiscais e possibilidades de programação fiscal de que lança mão o sector financeiro, tributar as mais-valias e apertar a malha ao off-shore da Madeira, o que neste orçamento continua a ser largamente insuficiente.
Na verdade continuam a ser os trabalhadores por conta de outrem a suportar a maior factura fiscal, quer porque não podem fugir nos impostos directos, quer porque são os mais prejudicados com o aumento da cobrança de impostos indirectos, já que por exemplo o governo vai manter o IVA em 19%. Há neste orçamento tímidas alterações, umas no sentido que há muitos anos temos vindo a defender, como é o fim dos benefícios fiscais à compra de PPR’s e produtos semelhantes e outras cujo âmbito está ainda por concretizar. O governo propõe por exemplo uma limitação à utilização de benefícios fiscais pelas empresas, designadamente pela banca, mas não está clarificado quais são os benefícios fiscais abrangidos ou se eles podem ser transferidos para anos seguintes. Quanto à descida das taxas de IRS ela vai ser amortecida pela manutenção de uma taxa de retenção na fonte mais alta do que a taxa efectiva. Isto é, em 2005 já se aplicam aos rendimentos as novas taxas, mas por via das retenções na fonte continuará a descontar-se mais em cada mês, sendo o acerto feito apenas em 2006 na liquidação do imposto. É certo que não é a primeira vez que isso acontece, mas há uma enorme contradição entre a propaganda de Santana Lopes e o que de facto vai acontecer em 2005.
Seja como for é positiva a anunciada intenção de combate à fraude e evasão fiscal. A não se que seja apenas mais uma promessa...
É legítimo suspeitar de tantas boas intenções. Na verdade em todos os orçamentos o governo sempre se compromete com um mais eficaz combate à fraude e evasão fiscal, mas depois na prática pouco se vê. Veremos o que acontece desta vez, porque de facto vivemos no nosso país numa situação de absoluta imoralidade nessa matéria.
Ataque aos sectores sociais
As funções sociais do Estado em áreas tão importantes como é, por exemplo, a educação estão devidamente acauteladas neste Orçamento?
As funções sociais continuam a ser fortemente penalizadas por este governo. A educação em concreto sofre uma diminuição de 1,3% no total, que sobe para 2,2% se considerarmos apenas o ministério da educação que se ocupa designadamente do ensino básico e secundário. É claro que assim nenhum país se desenvolve e que o acesso a uma educação de qualidade fica cada vez mais dependente, com o enfraquecimento da escola pública, dos recursos sócio-económicos de cada um. Até porque os subsídios ao ensino particular sobem mais de 9%.
Queres especificar melhor no que respeita à Segurança Social?
O que se passa na Segurança Social é que o governo está a prosseguir paulatinamente o caminho da sua descapitalização, abrindo caminho a uma crescente privatização. O governo volta a não cumprir a Lei de Bases que a sua maioria aprovou. A lei diz que devem ser transferidos dois pontos percentuais das contribuições dos trabalhadores para o Fundo de Estabilização Financeira. Só quando se verifiquem, segundo a lei, condições económicas adversas, se admite que isso não aconteça. Ora o governo volta a invocar esta cláusula excepcional para 2005. Só que o próprio governo apresenta um cenário de crescimento para o próximo ano, o que é contraditório com aquela justificação.
Quanto às pensões mais baixas, apesar de não haver concretização em relação aos valores de cada uma, já é possível prever que o aumento não será grande, já que a convergência prevista na lei com o salário mínimo nacional – e que só é a 100% para quem tenha mais de 30 anos de descontos – só avança de 61% para 64%. O espantoso é que o ministro garante que em 2006 haverá a convergência total, embora sem nunca concretizar os montantes necessários.
Por outro lado confirma-se o desinvestimento em prestações sociais importantíssimas, como o agora chamado rendimento social de inserção que só cresce em 2005, 3,5%, depois de este ano ter apenas aumentado 0,2% - o que significa uma diminuição real – num tempo de crise acentuada, o que o governo explica com a existência de problemas informáticos.
Confirma-se o que o PCP e a CGTP tinham dito em relação às alterações do subsídio de doença, cujas verbas diminuem no próximo ano cerca de 5%, o que, como não parece ser previsível que isto se deva à melhoria das condições de saúde dos trabalhadores, significa que haverá uma limitação ao recurso a este apoio.
E quanto à saúde?
Na saúde o problema que temos desde logo é que os números apresentados não têm qualquer correspondência com a realidade, são completamente falsos. Basta dizer que o governo prevê um saldo positivo de quase 200 milhões de euros em 2005, ao mesmo tempo que se sabe que os hospitais e os centros de saúde estão subfinanciados e não têm recursos para funcionar condignamente e que os principais credores da saúde reclamam dívidas em atraso no valor de mais de 2900 milhões de euros.
Mas há uma novidade neste orçamento. É que finalmente podemos ter uma ideia de quanto vai custar ao Estado a entrega de 10 novos hospitais aos privados, já que o ministério das finanças apresentou essa informação. São mais de 7400 milhões de euros, ou seja cerca de 1500 milhões de contos, que vamos pagar até 2037.
O que não parece ser nada um bom negócio para o Estado...
A verdade é que sairia muito mais barato ao Estado, mesmo que tivesse que se endividar, construir e gerir ele próprio estes hospitais. A questão é ainda mais grave se dissermos que estes hospitais abrangerão um quarto da população portuguesa, que terá a sua saúde hospitalar entregue aos interesses lucrativos dos privados durante duas a três décadas. O pior é que Bagão Félix já garantiu que, para além do dinheiro do orçamento de Estado, estes hospitais serão pagos aos privados segundo o famoso princípio do utilizador pagador, baseado nos rendimentos declarados ao fisco. Isto significa que por um lado quem está mais doente vai ser mais prejudicado e por outro que se vai transportar para a saúde a injustiça do sistema fiscal. Quanto aos medicamentos mantém-se o injusto sistema de preço de referência nos medicamentos genéricos, que levou a que nos primeiros 7 meses do ano os utentes pagassem mais, nestes medicamentos, 6,7 milhões de euros, sempre que o médico não autorizou a substituição de um medicamento de marca por um genérico.