ESTADO DE GRAÇA

A graça acabou. A luta continua

Este Governo parece querer prolongar o chamado estado de graça – os tais cem dias que um acordo consensual entre os partidos da política de direita e os media ao seu serviço oferecem a quem, na alternância burguesa, se senta nas cadeiras do poder, desde que não altere em substância o que de fundamental o antecessor havia feito. É certo que os cem dias ainda não passaram, mas o silêncio governamental do PS, desta vez chefiado por um Sócrates que conseguiu ter mão nos seus ministros e não deixar transparecer as clivagens que certamente não tardarão a germinar no executivo e no partido, a propósito do que se faz e não faz, do que parece e não é, já diz bastante. A impaciência dos media, entretanto, vem levantando o véu de graça com que deixou cobrir a governação PS e, a propósito das desavenças que vão surgindo entre PS e PSD, sempre no plano das regras do jogo político e nunca sobre questões de fundo, vai-se revelando que a graça está a acabar.
Graça, entretanto, foi coisa que o Governo nunca obteve junto da grande maioria dos eleitores que lhe deram tão-só o benefício da confiança – ou da dúvida? – ao concederem-lhe uma maioria confortável para conduzir os destinos do País. E as acções ou omissões que o Governo tem perfilhado mostram já que a dúvida se sobrepõe à confiança junto dos trabalhadores e das populações em geral ao verem que, em questões fundamentais e estilo à parte, a mesma política de direita continua.

Podemos avançar com algumas das opções que toma o PS, desta vez no Governo, e que o mostram em contradição consigo mesmo quando, na oposição, pretendia mostrar uma face mais ou menos de esquerda, enrolada embora na redondeza de declarações turvas para não assustar o capital e conseguir pescar votos no pântano social dominado ideologicamente pela política neoliberal. A recusa do PS em aprovar a proposta comunista de aumento do salário mínimo nacional terá sido o primeiro sinal mais gritante de que, no Governo, o PS não está para acudir às situações de miséria que alastram e que no País atingem dois milhões de portugueses, entre os quais 200 mil passam fome.
As promessas de diminuir o desemprego não se vê que passem de promessas, pois, ainda, meses passados, não há medidas nem indicações de que venham a ser tomadas para ao menos reduzir o flagelo social que vitima mais de meio milhão de trabalhadores. E quanto ao famigerado Código do Trabalho, a mais negra herança da maioria de direita? Na oposição, o PS, pela voz de Vieira da Silva, aplaudido pela sua bancada, invectivou a proposta de lei, apontando-lhe a colisão frontal com «a matriz em que assenta a nossa Constituição laboral». E sublinhava os «graves e injustificados atentados ao direito de negociação colectiva». No Governo, Sócrates, à saída do Conselho da Concertação Social, afirmava, na passada semana, querer que «as convenções colectivas de trabalho, celebradas há muitos anos, caduquem». A este respeito, Jerónimo de Sousa, sublinhou no sábado, em Guimarães, que tais declarações fazem «tábua rasa de direitos conquistados por gerações de trabalhadores e consagrados na contratação colectiva, abrindo espaço à continuação da ofensiva que o governo do PSD/CDS iniciou com a aprovação do Código».

A política de direita, responsável não apenas pela retirada de direitos aos trabalhadores e aos cidadãos em geral mas também pela destruição sistemática do sector produtivo nacional e pela fragilização da economia portuguesa, não parece ser o alvo principal do ataque do PS agora no Governo. E o tão falado «choque tecnológico», um projecto vago, reduzido em objectivos como já se afirma, certamente não terá como consequência o crescimento económico, nem trará a resolução de problemas tão graves como a desindustrialização em que se vêm consumindo milhares de postos de trabalho e criação de riqueza. A política de direita veio para ficar com o Governo PS? É o que muitos interrogam já, um par de meses sobre as eleições de Fevereiro. Para tal haviam alertado os comunistas, quando afirmavam que, mais importante do que derrotar a direita era derrotar a política de direita e que uma maioria absoluta do PS não dava garantias de alteração, no fundamental, da política prosseguida ao longo de 29 anos, por sucessivos governos alternantes.

E acerca do que o PS tem feito no Governo? O essencial da sua acção encontra-se no plano político, com opções desastrosas em que mostra as suas desavenças formais com o PSD, mas não recolhe o apoio da esquerda, nomeadamente na questão da limitação de mandatos que visa desvalorizar o poder local democrático, ou, ainda na mesma área, a lei eleitoral que pretende também empobrecer o poder local e assegurar o poder absoluto dos presidentes. Sem falar na escandalosa postura do Partido Socialista e do seu Governo no tocante a um flagelo social que deixa embrulhado novamente nas vicissitudes der um referendo – um modo de perpetuar o problema que a Assembleia da República poderia ter há muito resolvido. Por tudo isto, e por muito mais que aqui não coube, as vozes erguem-se já contra a governação PS.
A graça acabou. A luta continua.