Os verdadeiros monstros medievais
Afinal, os monstros do Oriente existem. Existem, porque sempre se ouviu falar deles – dos seres sem cabeça mas com olhos, nariz e boca no peito; dos em tudo iguais aos homens, mas apenas com um pé; dos outros, com corpo humano e cabeça de cabeça de cão –, mas acima de tudo porque houve quem tivesse viajado até aos confins da terra e os tivesse conhecido. Foi Bandolino que os viu, que com eles falou e conviveu durante anos, Bandolino, personagem do homónimo romance de Umberto Eco, um velho quando faz a sua narrativa, supostamente biográfica. Supostamente, sublinhe-se. Ele conta as suas aventuras de vida como sendo verdadeiras, tão verdadeiras a ponto de ele admitir ser autor de inúmeras trapaças, mentiras, esquemas, ilusões e patranhas, muitas delas com consequências no futuro da Europa. No entanto, a confissão de que ele é o maior mentiroso que existe faz-nos duvidar da sua própria confissão.
É o paradoxo. Diz o mentiroso: menti sempre, mas parei agora e, como prova disso, confesso-te todas as minhas mentiras. Acreditamos nas suas palavras ou assumimo-las como mais uma das suas patranhas? Por um lado, os seus relatos são extraordinários, mas, por outro, o que conta encaixa-se nos nossos conhecimentos prévios, nas descrições que nos deixaram memorialistas clássicos, na História que herdámos, nas tradições que recebemos. Mas, acima de tudo, Bandolino tem um argumento fortíssimo: sabe contar as suas histórias de maneira a envolver o ouvinte, neste caso Nicetas. Este, apesar de estar a fugir da sua cidade, Constantinopla, devido à conquista dos cruzados europeus, está suspenso da narrativa, quase dando mais importância ao passado de Bandolino do que ao caos em que a sua vida se tornou.
Com o leitor acontece o mesmo, apesar de já ter acesso a informações científicas que provam que os monstros não existem na terra – nem sereias, nem mulheres com pés de cabra, mesmo bem intencionadas... Porque aqui não importa a veracidade do relato, mas sim o próprio relato. A curiosidade de Nicetas é a do leitor, a vontade de ouvir a história, de saber o que se passa a seguir. É o entusiasmo de quem lê, de quem pretende decifrar algo nas palavras dos outros, de quem anseia por conhecer o desenrolar do enredo. Ler é um misto de descoberta, fantasia, observação e reconhecimento. E, como explicava Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção, a obra só permanece viva através do apelo ao leitor, pedindo-lhe uma interpretação e agindo através de uma multiplicidade de significações. «Ler é ir ao encontro de qualquer coisa que está para ser e que ainda ninguém sabe o que será», escreve Ítalo Calvino em Se Numa Noite de Inverno um Viajante, uma obra que mostra a impossibilidade de um autor dar um texto por acabado e um livro como completo, por o número de leitores ser ilimitado e, portanto, o número de leituras ser infinito.
Átomos e vazio
Voltemos a Bandolino, de Eco. Temos os mundos em espelho, como o Ocidente imagina o Oriente e vice-versa, tendo acesso à forma como os outros nos vêem, a dimensão das lendas sobre a nossa cultura e geografia, a relação com o desconhecido, as ideias prévias e como isso influencia o que se vê e depois se descobre. É o caso dos Reis Magos. No reino de Prestes João (sim, segundo Bandolino existirá), esperava-se há mais de mil anos o regresso dos 12 monarcas que partiram para saudar Jesus no berço e, quando os populares vêem 12 estrangeiros chegar a cavalo, não duvidam que se trate dos prometidos magos. Nessas terras longínquas, um príncipe pergunta a Bandolino se são verdadeiras as lendas que garantem que no Ocidente o pão cresce espontaneamente todas as madrugadas, que os cristãos comem leões em praças, que o solo é transparente e deixa ver os peixes a nadar por baixo...
Ao lado destes mitos, temos interessantes discussões científicas – igualmente típicas da Idade Média – sobre a existência do vazio e dos átomos, se a terra é redonda ou plana ou a construção de autómatos e mecanismos que aplicam as leis da física e da química e usam, por exemplo, os efeitos do calor para levantar objectos como se fosse magia.
Também aqui se levanta a questão: o que é a verdade? Primeiro de tudo, até que ponto o que conta Bandolino corresponde aos factos por ele vivenciados? Depois, qual a veracidade da História oficial, a dos livros? Tudo depende da leitura e do «leitor», como se prova com as diferentes perspectivas sobre a morte do imperador Frederico. Para o mesmo acontecimento temos várias interpretações e cada interveniente está plenamente convicto da sua versão. «Numa grande Estória pode-se alterar pequenas verdades para que ressalte a verdade maior», lê-se nas últimas linhas da obra. A questão fica, pois, por responder: o que é a verdade? Quantas verdades existem? Há alguém com autoridade para a definir?
É o paradoxo. Diz o mentiroso: menti sempre, mas parei agora e, como prova disso, confesso-te todas as minhas mentiras. Acreditamos nas suas palavras ou assumimo-las como mais uma das suas patranhas? Por um lado, os seus relatos são extraordinários, mas, por outro, o que conta encaixa-se nos nossos conhecimentos prévios, nas descrições que nos deixaram memorialistas clássicos, na História que herdámos, nas tradições que recebemos. Mas, acima de tudo, Bandolino tem um argumento fortíssimo: sabe contar as suas histórias de maneira a envolver o ouvinte, neste caso Nicetas. Este, apesar de estar a fugir da sua cidade, Constantinopla, devido à conquista dos cruzados europeus, está suspenso da narrativa, quase dando mais importância ao passado de Bandolino do que ao caos em que a sua vida se tornou.
Com o leitor acontece o mesmo, apesar de já ter acesso a informações científicas que provam que os monstros não existem na terra – nem sereias, nem mulheres com pés de cabra, mesmo bem intencionadas... Porque aqui não importa a veracidade do relato, mas sim o próprio relato. A curiosidade de Nicetas é a do leitor, a vontade de ouvir a história, de saber o que se passa a seguir. É o entusiasmo de quem lê, de quem pretende decifrar algo nas palavras dos outros, de quem anseia por conhecer o desenrolar do enredo. Ler é um misto de descoberta, fantasia, observação e reconhecimento. E, como explicava Hans Robert Jauss e a Estética da Recepção, a obra só permanece viva através do apelo ao leitor, pedindo-lhe uma interpretação e agindo através de uma multiplicidade de significações. «Ler é ir ao encontro de qualquer coisa que está para ser e que ainda ninguém sabe o que será», escreve Ítalo Calvino em Se Numa Noite de Inverno um Viajante, uma obra que mostra a impossibilidade de um autor dar um texto por acabado e um livro como completo, por o número de leitores ser ilimitado e, portanto, o número de leituras ser infinito.
Átomos e vazio
Voltemos a Bandolino, de Eco. Temos os mundos em espelho, como o Ocidente imagina o Oriente e vice-versa, tendo acesso à forma como os outros nos vêem, a dimensão das lendas sobre a nossa cultura e geografia, a relação com o desconhecido, as ideias prévias e como isso influencia o que se vê e depois se descobre. É o caso dos Reis Magos. No reino de Prestes João (sim, segundo Bandolino existirá), esperava-se há mais de mil anos o regresso dos 12 monarcas que partiram para saudar Jesus no berço e, quando os populares vêem 12 estrangeiros chegar a cavalo, não duvidam que se trate dos prometidos magos. Nessas terras longínquas, um príncipe pergunta a Bandolino se são verdadeiras as lendas que garantem que no Ocidente o pão cresce espontaneamente todas as madrugadas, que os cristãos comem leões em praças, que o solo é transparente e deixa ver os peixes a nadar por baixo...
Ao lado destes mitos, temos interessantes discussões científicas – igualmente típicas da Idade Média – sobre a existência do vazio e dos átomos, se a terra é redonda ou plana ou a construção de autómatos e mecanismos que aplicam as leis da física e da química e usam, por exemplo, os efeitos do calor para levantar objectos como se fosse magia.
Também aqui se levanta a questão: o que é a verdade? Primeiro de tudo, até que ponto o que conta Bandolino corresponde aos factos por ele vivenciados? Depois, qual a veracidade da História oficial, a dos livros? Tudo depende da leitura e do «leitor», como se prova com as diferentes perspectivas sobre a morte do imperador Frederico. Para o mesmo acontecimento temos várias interpretações e cada interveniente está plenamente convicto da sua versão. «Numa grande Estória pode-se alterar pequenas verdades para que ressalte a verdade maior», lê-se nas últimas linhas da obra. A questão fica, pois, por responder: o que é a verdade? Quantas verdades existem? Há alguém com autoridade para a definir?