Os homens, a cidade
O tema dos «Prós e Contras» foi, desta vez, «A cidade dos homens». Era um título já marcado pelo pensamento cristão, o que surpreendia: naquela noite, o programa recebia como convidado uma personalidade que não anda por aí em quaisquer debates, nada menos que D. António, patriarca de Lisboa. É certo que recebia também uma outra figura relevante da vida cultural portuguesa, o professor José Barata-Moura, reitor da Universidade Clássica, mas Barata-Moura vinha marcado por uma espécie de «handicap» desfavorável: é militante do Partido Comunista Português, e ninguém espera que um comunista, mesmo que de estatura cultural acima da média, seja tratado com atenções especiais pela RTP. Atenções positivas, é claro; pois bem se sabe que quanto às negativas nunca lhas faltarão, e o próprio Barata-Moura teve o cuidado de lhes acusar a recepção ao dizer, em tom de bom humor e «fair-play», que para ouvir provocações é que estava ali. Ninguém o contradisse, claro sinal que sobre o assunto não existiam quaisquer dúvidas. E, convém registá-lo, não é que ele não tivesse tomado precauções para evitar grandes e porventura até desejáveis choques: em todas as suas intervenções aceitou reflectir em terrenos alheios, evitou introduzir entendimentos de radicação marxista até quando seria desejável fazê-lo, embora nunca tivesse transigido com interpretações e argumentos inquinados. Só uma vez esteve um pouco mais perto de perder a paciência (que na circunstância bem legitimaria a expressão tradicional «santa paciência») quando demonstrou a quem seguia o programa com atenção bastante que a dr.ª Maria José Nogueira Pinto, que aliás é senhora inteligente e de excelente fé, nem sempre percebe muito bem o que diz. A doutora não pareceu entender muito bem o que acontecera e ficou com o ar de não ter gostado do breve episódio. Aí se indiciou que a generalidade dos presentes não terá valorizado a atitude bem educada de José Barata-Moura ao abdicar do direito, que inteiramente lhe assistia, de usar a artilharia pesada da sua argumentação possível, a análise marxista das questões em debate. Também terá talvez querido evitar a acusação de aproveitar a oportunidade para fazer proselitismo filosófico e político, do que aliás não se coibiram os restantes convidados. É que, como ninguém ignora, é considerado normal que nos media seja feita a propaganda não apenas do cristianismo mas também da organização capitalista da sociedade, mas olha-se como insuportável escândalo a exposição de interpretações marxistas da realidade.
A grande omissão
Sob o tema «A cidade dos homens», fórmula já impregnada de uma conotação cristianizante, falou-se da solidão e da exclusão nas sociedades actuais, dos recentes conflitos nos subúrbios de Paris e já noutros lugares, confirmou-se o decreto que condena à morte o chamado Estado Social, isto é, a obrigatoriedade que sobre o Estado impende de, com o dinheiro dos cidadãos, garantir a satisfação das necessidades básicas dos mesmos cidadãos. Como já se disse, Barata-Moura renunciou ao que decerto seria elementar mas talvez inoportuno: lembrar que com outra organização social os males poderiam ser extirpados; mas não deixou de apontar para o futuro quando se falou de esperança. Então, sublinhou que a esperança que é a sua (mas, todos ali o sabiam, ele partilha com muitos mais) «não é uma fezada e se constrói. Contudo, é preciso que eu deixe aqui registada a maior decepção que o debate me provocou. É que, com a presença de D. José Policarpo e de Barata-Moura, já para não falar dos outros participantes que seguramente não são burros, não se mostraram agressivos e se assumiram implicitamente como católicos, eu esperava que ali fosse acentuada a efectiva convergência de fundo entre comunistas e cristãos em torno de valores fundamentais que lhes são comuns e cuja ausência está na raiz do que hoje vai acontecendo na Europa e no mundo: a fraternidade, a solidariedade (que os cristãos muitas vezes designam por caridade e promovem a virtude teologal sem que essa origem perturbe o essencial), a partilha. Esse dado essencial para discutir uma mais justa «cidade dos homens» foi ali completamente silenciado e, contudo, até por atenção para com José Barata-Moura devia ter introduzido na conversa. Fiquei com esse desapontamento. E com a remota esperança de que, um dia, pelo menos os que não são apenas cristãos de fachada reconheçam expressamente que, relativamente aos comunistas, «é mais forte o que nos une que aquilo que nos divide», como num contexto muito diverso lembra uma canção bonita que ainda se ouve por aí.
A grande omissão
Sob o tema «A cidade dos homens», fórmula já impregnada de uma conotação cristianizante, falou-se da solidão e da exclusão nas sociedades actuais, dos recentes conflitos nos subúrbios de Paris e já noutros lugares, confirmou-se o decreto que condena à morte o chamado Estado Social, isto é, a obrigatoriedade que sobre o Estado impende de, com o dinheiro dos cidadãos, garantir a satisfação das necessidades básicas dos mesmos cidadãos. Como já se disse, Barata-Moura renunciou ao que decerto seria elementar mas talvez inoportuno: lembrar que com outra organização social os males poderiam ser extirpados; mas não deixou de apontar para o futuro quando se falou de esperança. Então, sublinhou que a esperança que é a sua (mas, todos ali o sabiam, ele partilha com muitos mais) «não é uma fezada e se constrói. Contudo, é preciso que eu deixe aqui registada a maior decepção que o debate me provocou. É que, com a presença de D. José Policarpo e de Barata-Moura, já para não falar dos outros participantes que seguramente não são burros, não se mostraram agressivos e se assumiram implicitamente como católicos, eu esperava que ali fosse acentuada a efectiva convergência de fundo entre comunistas e cristãos em torno de valores fundamentais que lhes são comuns e cuja ausência está na raiz do que hoje vai acontecendo na Europa e no mundo: a fraternidade, a solidariedade (que os cristãos muitas vezes designam por caridade e promovem a virtude teologal sem que essa origem perturbe o essencial), a partilha. Esse dado essencial para discutir uma mais justa «cidade dos homens» foi ali completamente silenciado e, contudo, até por atenção para com José Barata-Moura devia ter introduzido na conversa. Fiquei com esse desapontamento. E com a remota esperança de que, um dia, pelo menos os que não são apenas cristãos de fachada reconheçam expressamente que, relativamente aos comunistas, «é mais forte o que nos une que aquilo que nos divide», como num contexto muito diverso lembra uma canção bonita que ainda se ouve por aí.