Milhão e meio

Correia da Fonseca
Era o dia internacionalmente consagrado à Prevenção e Segurança no Trabalho. É certo que praticamente ninguém terá dado por isso a partir das informações quotidianas prestadas pelos grandes media, mas era. Excepção a essa regra geral de indiferença foi, nesse dia, o programa «Sociedade Civil», apresentado por Fernanda de Freitas. Na «2», naturalmente: bem se sabe que esses programas com conteúdos úteis e inteligentes esconde-os a RTP em lugares e/ou horários com pouco trânsito de espectadores, não vá muita gente reparar neles. Pois foi no «Sociedade Civil» desse dia e a propósito da Prevenção e Segurança no Trabalho que esteve em estúdio o dr. Fausto Leite, especialista em Direito do Trabalho. E, entre várias outras coisas interessantes que ali se ouviram, o dr. Fausto Leite revelou que é estimado em cerca de um milhão e quinhentos mil o número de trabalhadores com problemas de natureza psíquica. Não disse se todos eles eram graves, sendo de presumir que não, embora nunca se saiba quando um problema psíquico não-grave pode evoluir para um acentuado nível de gravidade. De qualquer modo, é um número mais que inquietante, arrasador. Foi citado, como bem se compreende, no quadro do tema naquele dia, a segurança (ou a falta dela) no trabalho, não parecendo que exija grandes estudos ou apurada intuição saber-se que um trabalhador com problemas psíquicos está mais exposto ao acidente, para lá de outros factores que o possam propiciar. O número foi referido, pois, a pensar nas consequências eventualmente decorrentes de tantos trabalhadores com aquele tipo de fragilidade. Porém, sem de modo algum desvalorizar a importância dos problemas psíquicos como causa, fiquei eu, e decerto não apenas eu, a pensar na sua tão impressionante abundância como consequência. Isto é, fiquei à procura de motivos que possam levar pelo menos uma boa parte do tal milhão e meio de trabalhadores a ter problemas psíquicos.

Uma curiosa razão

Foi fácil. Ou pelo menos pareceu-me fácil, quase evidente. Para começar, lembrei-me do meio milhão de trabalhadores que estão desempregados, e bem se sabe que este é um número que erra por defeito. Não direi que todos, rigorosamente todos os trabalhadores no desemprego estão com problemas de ordem psíquica: haverá os fortes, os optimistas, os que têm motivos concretos para não se inquietarem, até os que não se sintam mal assim – ao menos por algum tempo. Contudo, haverá que lembrar os familiares dos trabalhadores desempregados que partilham a sua angústia, designadamente as esposas também trabalhadoras mas cujo salário não chega para manter as despesas correntes da família. Depois lembrei-me dos muitos milhares de trabalhadores que estão em empresas que por uma razão ou por outra dão claros sinais de fragilidade e ameaçam fechar portas. Não imagino quantos sejam mas, a julgar pelo que se vê e se sabe, hão-de ser muitos, e é natural que a maior parte deles viva roída pela inquietação, pela angústia de não saber por quanto tempo mais pode assegurar o sustento da família, a educação dos filhos. Que essa angústia muitas vezes se transmite em problema psíquico parece-me a coisa mais natural deste mundo. E há também os trabalhadores que, embora não ameaçados de despedimento, vêem aproximar-se a idade da reforma e sabem, ou receiam, que o valor da reforma a receber não chegue para que mantenham o frágil equilíbrio financeiro de agora. E ainda os milhares de trabalhadores, sobretudo jovens mas não só, que vivem aprisionados nas malhas do trabalho precário mediante o estratagema do chamado recibo verde ou outro, e por isso não se atrevem a um projecto mínimo de vida que implique responsabilidades financeiras de médio/longo prazo. Se tudo isto, e o muito mais que aqui é esquecido, não resulta em problemas psíquicos para todos quantos se defrontam com situações assim, será porque ainda há muita gente com forças morais portentosas. Mas disse-nos o dr. Fausto Leite: atingidos, são cerca de milhão e meio. É muita gente. Poder-se-á usar a expressão frequente «-É obra!». Aqui com um sentido particular: é obra do maremoto neoliberal que devasta o mundo e que por cá, como em muitos outros lugares, encontrou executantes em sucessivos governos. Mas também resistências. Para que o maremoto não arrase um projecto civilizacional a que muito se usa agora chamar utópico por uma curiosa razão: por assentar na preservação de direitos humanos que convém esquecer: direito ao trabalho, à alimentação, à saúde. E à paz.


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