Penalização do aborto

Um crime contra a dignidade humana

Os comunistas, dentro e fora da Assembleia da República, continuam a sustentar com firmeza a exigência de se enfrentar, com coragem, o problema do aborto clandestino e de terminar com a criminalização que ofende os mais elementares valores humanos e civilizacionais e representa uma intolerável agressão e ameaça às mulheres portuguesas. Em entrevista ao Avante!, Fernanda Mateus, da Comissão Política do PCP, defendeu a aprovação de uma lei de despenalização do aborto, sendo indispensável que se desenvolva um vasto movimento de opinião que, entre outras finalidades, pressione os deputados nesse sentido.
Passados 8 anos desde o Referendo do Aborto, qual o seu significado e que consequências ele teve até aos dias de hoje?

Em primeiro lugar é importante lembrar que a decisão de realizar a 28 de Junho de 1998 este referendo constituiu um grave desrespeito pela Assembleia da República, até porque tinha sido aprovada uma lei de despenalização do aborto, que teve a particularidade de ter juntado votos de socialistas, de comunistas, d’«Os Verdes» e de três deputados do PSD. Entretanto, não demorou 24 horas para que a direcção do PS, de António Guterres, tenha cedido à pressão da direcção do PSD, de Marcelo Rebelo de Sousa, para a realização de um referendo.
Também importa recordar que esta decisão de realizar o referendo teve não só a oposição do PCP mas, igualmente, a crítica de diversas personalidades, de diversos quadrantes políticos e sociais, que, com complexidade, vêm ser confrontadas com a realização de um referendo que constituiu uma situação perfeitamente absurda.
Houve uma manifesta falta de empenho do PS, um partido que não teve uma posição oficial, que não participou na campanha pelo «Sim» à despenalização do aborto, primando pela ausência da intervenção política do PS e dos seus principais dirigentes, junto do seu eleitorado a favor do «Sim», num processo que culminou coma reafirmação da posição pelo «Não» por parte do secretário-geral do PS, no último dia de campanha.

Neste processo, qual a posição do PCP?

Estivemos contra a realização do referendo e considerámos, como consideramos hoje, que a Assembleia da República tinha, e tem, total legitimidade. Entretanto, o PCP foi o único grande partido que fez questão, na esfera da despenalização do aborto, de intervir activamente, envolvendo o conjunto dos seus militantes e das suas forças, acompanhado pelo «Movimento da Tolerância», um espaço unitário onde convergiram diversas personalidades.
Importa ainda recordar que esta campanha foi marcada, por um lado, por aqueles que se afirmaram pela despenalização do aborto, e, por outro lado, por uma campanha de enorme agressividade, de tentativa de humilhação das próprias mulheres, de mentira relativamente às verdadeiras razões pelas quais as pessoas estavam pela despenalização do aborto, fazendo uma forte coacção moral e religiosa.
A verdade é que houve uma vitória tangencial do «Não» neste referendo. Importa recordar que foram exactamente os partidos de direita e o PS que acordaram a realização do referendo, partidos que aprovaram uma lei orgânica onde se previa que o resultado só seria vinculativo se participassem mais de 50 por cento dos eleitores, que, logo no dia 29 de Junho de 1998, a partir do resultado, dão um passo de ignorar as decisões que anteriormente tinham tomado, passando a contestar a capacidade da Assembleia da República em legislar sobre esta matéria e a dar como vinculativo um resultado que na verdade não o foi.

Que interpretação se extrai deste resultado eleitoral?

Este referendo foi marcado por uma enorme abstenção, inclusivamente de muita gente que estando pelo «Sim» subestimou a importância política desse acto, de contribuir para acabar com a dimensão social e humana do aborto clandestino. Esta abstenção também mostrou quanto foi errado algum excesso de confiança que houve em alguns sectores que estavam pela despenalização do aborto em vésperas do referendo, subestimando a agressividade, a forma como a campanha foi realizada por parte dos sectores mais conservadores, mas a verdade é que o resultado mostrou um equilíbrio entre o «Não» e o «Sim», em que só participaram 31 por cento dos eleitores.

Podemos então concluir que o PS nunca teve vontade política de legislar esta matéria?

Logo após a realização deste referendo, o PS declarou – e estou a citar – que, «embora a expressão referendária da vontade popular não tenha assumido contacto vinculativo, resultou dela uma indicação negativa. Está assim inviabilizada a aprovação da lei.»
Podemos dizer que esta posição, assumida a 29 de Junho de 1998, acabou por determinar não apenas a posição da maioria do PS entre 1998 e 2002, altura em que continuou a ter maioria na Assembleia da República, mas a postura do próprio PS até aos dias de hoje.
Quem passar em revista a avaliação do resultado do referendo verifica que a esmagadora maioria das posição assumidas, do «Movimento da Tolerância» até à «Associação para o Planeamento da Família», passando pelo MDM e pela CGTP-IN, todas essas entidades assumiam, com clareza, que o resultado não tinha sido vinculativo e, portanto, da Assembleia da República, voltava a estar nas mãos a resolução desta posição. Esta era uma posição que coincidia com a que o PCP tinha assumido no passado, como assumiu a propósito do resultado do referendo.

PS e BE iludem portugueses

Após as eleições legislativas de 2002, quando a direita – PSD e CDS/PP – faz uma coligação, o PS e o BE unidos exigem a realização de um novo referendo sobre o aborto. Como é que se explica esta tomada de posição?

No campo dos partidos que estão pela despenalização do aborto, nunca tinha aparecido a exigência de realização de um referendo como a única forma de resolver o problema. Este passo é dado pelo PS e pelo BE nesta altura, sem marcar as suas próprias iniciativas legislativas. O passo que dão é fomentar o aparecimento desta exigência no campo democrático e unitário, criando a ilusão de que esta era a única e a primeira reivindicação que unia todo o campo democrático e todos aqueles que estavam pela despenalização do aborto.
Pensamos que foi um passo errado e grave. A exigência do referendo nunca foi no campo democrático - não estou a falar das forças políticas - um denominador comum. Todos nós, que participámos nesta luta, sabemos que amplos sectores do PS, de pessoas da área da direita, que estão pela despenalização do aborto, não concordaram com a realização do referendo, não consideravam necessário a sua realização, mas a verdade é que, com este passo, o PS, sempre com a ajuda do BE, criou a ideia de haver um grande número de cidadãos a exigir à Assembleia da República, em petição, a realização de um referendo, que por si obrigaria a direita no poder a realizar.

O que mudou com as eleições legislativas antecipadas de 2004?

A vida provou que a maioria parlamentar de 2004 (PS), não só não aprovou o projecto de lei do PCP de despenalização do aborto, como igualmente rejeitou a realização de um referendo, mostrando que o PS e o BE criaram falsas expectativas à possibilidade de um êxito mais rápido desta luta, tendo criado factores de divisão entre aqueles que estão pela despenalização do aborto, num quadro em que nós precisaríamos de ter uma unidade, uma convergência vasta entre todos aqueles que lutam há muitos anos e desejam uma mais rápida resolução deste problema.
Entretanto, o referendo de 1998 e os desenvolvimentos que desde então se verificaram mostram com muita clareza que objectivamente o PS, sempre com o apoio do BE, encontrou na exigência de realização de um novo referendo uma saída muito airosa para fugir, até aos dias de hoje, às suas responsabilidades políticas de fazer aprovar uma lei.

Mas que razões tem o PS para não aprovar esta lei?

Não há nenhuma razão constitucional ou legal que impeça que a Assembleia da República aprove uma lei. Isto só acontece porque o PS tem dificuldade em gerir as profundas contradições que há mais de duas décadas vai tendo sobre esta matéria, contradições que se manifestaram de maneira diferente. Posso dar um exemplo: aprovou-se a primeira lei de despenalização do aborto em 1984, muito por iniciativa e por esforço do PCP, e quando em 1998 se aprovou uma nova lei de despenalização do aborto, fez-se com a consciência de duas coisas - que a lei que tinha sido aprovado em 1984 deixava de fora as principais causas que levam as mulheres para o aborto, mas também o aumento da consciência de que não tinha sido aplicada a lei 6/84, mesmo nos casos restritos.
Ou seja, por um lado aprovaram a lei e por outro as suas contradições levaram a não terem a atitude enérgica de criar os mecanismos e os instrumentos necessários que as diversas unidades hospitalares fossem obrigadas a preencher as condições para aplicação da própria lei.

Sabendo-se que se realizam, todos os anos, entre 20 a 40 mil abortos em Portugal e que nos últimos anos foram já a tribunal várias pessoas acusadas de prática de aborto, como é que o PCP tem acompanhado esta situação?

Este número de abortos clandestinos põe em causa o argumento, sempre usados, pelos sectores mais obscurantistas e de direita de que a despenalização do aborto levaria a que as mulheres passassem a usar o aborto como método contraceptivo. Quando, em 1982, o PCP apresentou o primeiro projecto de despenalização do aborto em Portugal estimava-se a existência de cem mil abortos clandestinos. Hoje temos entre 20 a 40 mil. Isto significa que as mulheres, a partir do momento que lhes foram facultadas alternativas seguras, a contracepção e o planeamento familiar, são as primeira a fazer uso disso. Esse número também prova, como sempre temos dito, que na verdade não há nenhum método cem por cento seguro. Pode haver um esquecimento ou uma doença e a pílula deixa de funcionar.

É ou não verdade que após o referendo houve uma maior perseguição de mulheres?

Anteriormente também houve julgamentos de mulheres. Mas creio que a partir de 1998 o conjunto de julgamentos que envolveram mulheres e familiares aumentou. Basta recordar que o julgamento da Maia abrangeu 17 mulheres e 42 arguidos. E o de Aveiro as mulheres, os namorados, os familiares, as parteiras e os médicos. Significa que, na verdade, há toda uma linha de julgamentos, de criminalização, que na nossa opinião põe em causa e reafirma a existência de um lei penal que está desajustada da realidade social, que trata as mulheres como criminosas, que tem que ser expurgada do código penal, uma lei que, inclusivamente, está feita ao arrepio das recomendações internacionais que apontam para a necessidade do recurso ao aborto seguro.

Quais as consequências destas perseguições?

Este quadro agrava os perigos do circuito clandestino em Portugal. Porque muitas mulheres com menos informação, com receio, acabam por recorrer a circuitos extremamente perigosos para a sua saúde, por levar ao aumento dos preços. Se a situação de risco é maior, logo o negócio em torno do aborto clandestino floresce. Consideramos, por isso, que essa situação é extremamente injusta para as mulheres, principalmente das camadas mais desfavorecidas.
Esta lei, simultaneamente, maltratando quem utiliza o circuito clandestino, também é uma lei que é injusta para as mulheres que têm que ir a correr a Espanha ou que têm que fingir que vão fazer «compras» a Londres para poderem ter a garantia de uma interrupção voluntária da gravidez feita em condições de segurança.

Solidariedade internacional

Portugal e a Irlanda são os países da UE com a legislação mais punitiva sobre a despenalização do aborto. Como é que a Europa e o mundo vêem esta situação?

Pelas várias iniciativas que tivemos oportunidade de realizar, nomeadamente a nossa eurodeputada Ilda Figueiredo, a propósito dos julgamentos, desencadea várias acções de solidariedade no plano internacional. Pelas respostas que foram dadas, não apenas por deputados no Parlamento Europeu, de vários quadrantes políticos, pelas pessoas de várias organizações que manifestaram apoio à necessidade de despenalizar o aborto em Portugal e que manifestaram solidariedade para com as mulheres que têm estado em julgamento, pelas próprias posições que os partidos comunistas têm tomado relativamente à nossa luta em Portugal, creio que podemos dizer que eles reconhecem que há de facto em Portugal uma situação de atraso nesta matéria, relativamente a valores e a concepções que já estão muito generalizados. Esta é uma situação que nos deve envergonhar a todos.

Em Setembro deste ano, a despenalização do aborto vai voltar a plenário. Que acções tem o PCP, juntamente com outras entidades, programadas até lá?

Não basta as iniciativas próprias do PCP nesta matéria. Temos desenvolvido uma vasta intervenção. Em Setembro vamos voltar a apresentar o projecto-lei de despenalização do aborto. Desenvolveremos o nosso próprio trabalho no sentido de manter viva esta matéria. Mas, como nós sempre temos dito, é fundamental alargar o movimento de opinião e de pressão na sociedade portuguesa que una todos aqueles que acham que é urgente a despenalização do aborto e que consideram que esta despenalização não tem que passar pelo referendo. Nós temos estado sempre disponíveis para participar com outros cidadãos em movimentos que na verdade levem o esclarecimento à população e que façam sentir a necessidade de que se aprove uma lei sem recurso ao referendo.
É preciso intervir junto de muitos cidadãos, homens e mulheres, que estão pela causa da despenalização do aborto e que, face às muitas expectativas que foram goradas ao longo deste tempos, face à posição que o PS mantém de insistir na realização do referendo, que muitas vezes optam por cruzar os braços, não porque concordem com este caminho, porque não concordam, mas porque acham que estão impotentes para fazer alguma coisa.
Toda a luta pela despenalização do aborto em Portugal mostra que ou há movimentos de opinião forte – que afirmem com muita clareza, junto da Assembleia da República e da sociedade portuguesa, quais são os caminhos justos para que este problema seja resolvido. Movimentos que não baixem os braços face aos obstáculos que têm vindo a ser colocados – ou esta luta vai levar muitos anos a ter êxito.

PCP propõe:

      • A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher para garantir o direito à maternidade consciente e responsável.
      • Nos casos de mãe toxicodependente o alargamento do período atrás referido para as 16 semanas.
      • A especificação de que, havendo risco de o nascituro vir a ser afectado pelo síndroma de imunodeficiência adquirida, o aborto (eugénico) poderá ser feito até às 24 semanas (situação que já está compreendida na actual lei, mas que convirá explicitar dadas algumas resistências ainda existentes relativamente à aplicação da lei).
      • O alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a IVG pode ser praticada sem punição, nos casos em que a mesma se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher grávida. Na verdade, a vida demonstrou, nomeadamente nas doentes submetidas a tratamentos antidepressivos, a necessidade de alargamento do prazo.
      • O alargamento para 24 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica.
      • A obrigação de organização dos serviços hospitalares, nomeadamente dos distritais, por forma a que respondam às solicitações de prática da Interrupção Voluntária da Gravidez.
      • A impossibilidade de obstruir o recurso à Interrupção Voluntária da Gravidez através da previsão da obrigação de encaminhar a mulher grávida para outro médico não objector de consciência ou para outro estabelecimento hospitalar que disponha das condições necessárias à prática da Interrupção Voluntária da Gravidez.
      • A despenalização da conduta da mulher que consinta na Interrupção Voluntária da Gravidez fora dos prazos e das condições estabelecidas na lei.
      • Garantia de acesso a consultas de planeamento familiar.


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A garantia de uma interrupção voluntária da gravidez, a pedido da mulher e até às 12 semanas, em condições de segurança, é parte integrante da promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres, constante em múltiplas recomendações internacionais. Entretanto, foi criado o Movimento pela Despenalização do IVG que exige a despenalização do aborto a pedido da mulher até às 12 semanas. Neste sentido, um pouco por todo o País, recolhem-se assinaturas pelo direito de a mulher optar livremente por uma maternidade consciente e responsável. Este abaixo-assinado será entregue em Setembro e tem como objectivo chamar a atenção para a urgente necessidade da Assembleia da República alterar a actual lei. Estas preocupações são comuns a muitos cidadãos que, independentemente da sua opção política e ideológica, entendem que não é possível adiar por mais tempo a resolução deste problema.

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