Persepolis e a ilusão do império universa
A aspiração de ver aquele lugar nasceu nos bancos do liceu quando estudei as guerras entre a Grécia e a Pérsia e soube que uma noite Alexandre, o Rei da Macedónia, incendiara os palácios que eu vira num livro de arte.
«Um dia irei até Persepolis» – decidi então.
Satisfiz o desejo em Maio, transcorridos quase setenta anos.
O sol do planalto iraniano queimava a terra ressequida e as colunas brancas da Apadana.
Inicialmente essas colunas eram negras, mas é suficiente passar a mão nelas para que o mármore recupere a cor primitiva. A imaginação não consegue, porém, recriar o grande palácio, tal como o viam os embaixadores estrangeiros ao serem recebidos por Dario, o Rei dos Reis.
Dois mil e quinhentos anos nos separam da Pérsia dos Aquemenidas no seu máximo esplendor. As cidades do nosso tempo e a organização da vida são profundamente diferentes. Mas o homem mudou menos na sua atitude perante o Poder do que seria desejável.
Em Persepolis, como na Pasárgada de Ciro, naquela manhã, quando a imaginação tentou a viagem pelos séculos em esforço para compreender a ambição de Dario e o sentido dos seus actos, a minha meditação sobre a História findou no presente.
As ruínas magestáticas de Persepolis fizeram-me voar, em cavalgada mental, até à Casa Branca onde um homem investido de um poder imenso, muito menos inteligente do que o monarca aqueménida, retoma num mundo que se agigantou o sonho persa do Estado Universal.
Na plataforma sobre a qual fora edificado o conjunto palacial o calor era abrasador.
Não havia nuvens no céu, mas o azul pálido apresentava uma tonalidade cinza que feria o olhar quando este se perdia nas montanhas.
Pouco ali se ajustava ao esperado. Tudo me apareceu como se fora redescoberto. Na Apadana, na Sala das Nações, nos Palácios de Dario e Xerxes. No das Cem Colunas, ao identificar marcas do incêndio que destruiu Persepolis, subiu em mim a pergunta repetida por incontáveis gerações: Por que queimou Alexandre, um príncipe culto, aqueles palácios, mais grandiosos do que tudo o que ele conhecera na Grécia?
Os Anais, redigidos durante a conquista da Pérsia, não esclarecem a questão. São múltiplas as versões dos historiadores gregos. Vingança pelo saque de Atenas por Xerxes? Descontrole emocional no fim de uma orgia? Nunca a pergunta obterá resposta.
A única certeza é a de que no mundo antigo não se fez algo comparável a Persepolis. Aliás, povo algum voltou a erguer colunas tão altas como as da Apadana que sustentavam a 20 metros do solo tectos de madeira trabalhada. As descrições dos escritores gregos expressam o seu espanto ante a riqueza ofuscante das portas de bronze, do ouro do embasamento das colunas e dos cascos e cornos dos toiros. O luxo das vestes bordadas a ouro, a profusão de pedras preciosas, as tapeçarias, as pinturas murais, o cerimonial, tudo ali deslumbrava os embaixadores admitidos à presença do monarca que se apresentava como o senhor de trinta nações diferentes.
No túmulo de Dário
O sol descera muito no horizonte quando, caminhando por uma vereda de saibro, avistei a escarpa de Naqsh-i-Rostam. O calor ainda queimava os pulmões.
Foi o prolongamento do choque recebido em Persepolis, a escassos quilómetros de distância. É um lugar inimaginável.
Os antigos imperadores persas eram sepultados entre o céu e a terra A grande necrópole dos Aqueménidas nasceu de um desafio à imaginação.
Numa falésia de 64 metros de altura, quase vertical, abrem-se, escavados na rocha, os túmulos de Dario I, Xerxes, Artaxerxes I e Dario II.
O tom da pedra é de um ocre dourado, incomum.
O sepulcro de Dario atrai o visitante. É uma obra de arte estranhíssima com três registos sobrepostos. No relevo superior aparece, esculpido, Ahura Mazda, o deus do zoroastrismo, em luta permanente pelo bem contra o mal. Em baixo surge Dario no seu trono, perante um altar do fogo. O rei é transportado pelos representantes dos povos vassalos. O relevo médio tem quatro colunas com a porta da câmara mortuária a meio. Reproduz o palácio real.
Dario pretendeu em primeiro lugar transmitir a mensagem do poder.
Em diferentes inscrições rupestres aparece a afirmação de um poder pessoal sem limites: «Eu sou Dario, o Grande Rei, o Rei dos Reis, o Rei do país de todas as raças, Rei sobre esta grande Terra que se estende muito longe, o filho de Hystapes, um Aqueménida, um persa, um ariano de origem ariana.»
A reivindicação do arianismo era, porém, contraditória. Dario não esquecia que os Persas e os Medos formavam a coluna vertebral do poder aqueménida. Mas o Império era um estado multinacional, amálgama de povos com culturas e religiões diferentes, que gozavam de ampla autonomia. O seu arianismo nada tinha de comum com o enaltecido por Hitler. Uma política racista teria destruído uma estrutura estatal frágil como a da Pérsia Aqueménida. Na época de Xerxes, o império, transcontinental, ia do Danúbio ao Indo, da Ásia Central às cataratas do Nilo, reunindo territórios com aproximadamente 5 milhões de quilómetros quadrados.
Contemplando as ruínas dos monumentos grandiosos dessa civilização agitavam-me sentimentos contraditórios. Uma sensação de irrealidade perturbava-me. Como fora possível que naquelas solidões, entre montanhas onde a neve nunca desaparece e desertos incompatíveis com qualquer forma de vida, um povo ainda tribal, vindo do Cáucaso, mobilizado por um rei de ambição planetária, tivesse sido o instrumento da primeira tentativa de Estado Universal?
Em Naqsh-i-Rustam recordei que Dario tinha vivido o suficiente para compreender que o seu projecto de Estado Mundial era muito mais difícil de concretizar do que imaginara. A derrota na Grécia terá sido uma advertência sobre os limites do seu poder.
Mas o filho, Xerxes, retomou o sonho e o resultado foi um novo e definitivo fracasso.
Transcorridos apenas 130 anos, um príncipe estrangeiro, vindo de um pequeno e pobre país europeu, a Macedónia, chegou e fez do impossível realidade: conquistou o Império do Rei dos Reis. Mas o desafio de Alexandre durou ainda menos que o dos Aquemenidas. Desfez-se quando ele morreu aos 32 anos.
O mundo surgia então aos sábios da época como muito pequeno, o que ajuda a compreender as ambições daqueles que pretendiam governá-lo. Para os contemporâneos dos persas e gregos findava a Norte nas águas do Cáspio e a Sul nas florestas impenetráveis da Índia; para Ocidente continuava pela África ate às cataratas do Nilo, mas as terras além do deserto líbico eram quase despovoadas; longíssimo, para Oriente, estava a China.
Os sassânidas
Bishapur, nas terras quentes do Sudoeste iraniano, apareceu-me como conjunto de ruínas de difícil identificação. A solidez das muralhas impressiona, mas da vasta área onde antes havia casas e templos, pouco resta.
As aparências enganam. Ali existiu uma estranha cidade. Foi construída não por persas, mas por legionários romanos em meados do século III da Nossa Era.
Roma iniciava a sua lenta decadência quando um grande exército, sob o comando do imperador Valeriano, foi derrotado no seu primeiro choque com uma potência que iria tornar-se hegemónica na região: a Pérsia Sassânida.
O acontecimento abalou o mundo antigo. Cerca de 40 000 legionários e o imperador renderam-se e foram conduzidos ao lugar cujas ruínas eu contemplava. No descampado, como prisioneiros, construíram uma cidade que recebeu o nome de Shapur, o vencedor de Roma.
Por que fui até ali na minha caminhada por terras do Irão?
Talvez para sentir, mais na atmosfera do que nas pedras, o fenómeno do primeiro dos muitos renascimentos persas. O povo de Ciro e Dario, após a conquista de Alexandre, tinha adormecido num sono letárgico, com as suas elites helenizadas. E, de repente, 550 anos após a destruição de Persepolis, uma dinastia, os Sassânidas, orgulhosa das suas origens, reconstrói um Império que promove o renascimento persa. Durante quatro séculos impõe-se militarmente, primeiro a Roma, e, depois a Bizâncio.
A Europa continua a desconhecer o que deve à Pérsia Sassânida. A arrogância eurocêntrica não apaga, porém, a história. A arte islâmica, após o início do Califado Abassida, foi decisivamente influenciada pela herança persa. Em múltiplos campos a contribuição da cultura sassânida para o desenvolvimento da civilização árabe não fica aliás aquém da greco-romana.
A cavalaria pesada, assim como o feudalismo, tem raízes iranianas. E foi igualmente persa a primeira reforma agrária da história, implantada pela revolução mazdaquista que estabeleceu uma modalidade de comunismo primitivo, reprimida com ferocidade.
Os Sassânidas também deixaram gravados em belos relevos rupestres a sua concepção do poder. Impressionaram-me os que vi próximo de Bishapur. Não há muitos exemplos de um deus ter cumprido como Ahura Mazda uma função tão importante na caminhada de um povo. Ao fundirem-se praticamente com ele, assumindo origem divina, os monarcas Sassânidas imprimiram ao Estado um carácter teocrático que os diferenciou dos Aqueménidas.
Os relevos sassânidas sobreviveram a incontáveis invasões e guerras. Esculpidos na pedra para expressar uma ambição de poder eterno, documentam hoje a brevidade dos grandes impérios e a irracionalidade de certas ambições humanas. O esboço do Estado Universal de Dario durou dois séculos. O Império Sassânida foi vencido e destruído em apenas quatro anos por um povo de nómadas, vindo das areias do deserto arábico.
Era difícil, ao visitar ruínas das grandes civilizações persas da Antiguidade, não pensar na actual crise de civilização que a humanidade enfrenta.
Meditei ali sobre a arrogância imperial dos EUA e a estratégia de dominação planetária de Bush, um pequeno homem, de muito poder e escassa inteligência.
Recordei as ameaças que dirige ao Irão, apresentando-se como representante da civilização e da cultura, ele que é um moderno bárbaro.
Vai durar pouco o império dos EUA. Terá o desfecho de quantos o precederam.
Esfahan e a visão do paraíso
Na periferia da cidade de Kashan subi a umas colinas arenosas onde há 7 000 anos existiu uma povoação, Sialk. No pequeno museu próximo vi fragmentos de uma cerâmica decorada que em objectos caseiros já então usava cores.
No Irão, a antiguidade da presença do homem impressiona e comove pela densidade dos vestígios que a testemunham.
No grande planalto, cruzado durante milénios por invasores vindos de todos os azimutes, parcelas das heranças culturais acumuladas sobreviveram sempre a períodos de violência e barbárie. Desde Sialk houve ali continuidade, por vezes quase invisível, na criação de coisas belas. Sementes de civilizações destruídas ou rudemente golpeadas fecundaram outras que, em cadeia quase ininterrupta, nasceram nos oásis e estepes emoldurados por montanhas ciclópicas.
Os reis Aqueménidas diziam que o Paraíso foi inventado por eles. A palavra, antiquíssima, surgiu na língua persa no tempo de Ciro, o Grande, para designar os jardins do seu palácio de Pasárgada, E ficou. A ideia do paraíso permaneceu associada à beleza de jardins cuja atmosfera e encanto mágico já eram cantados pelos poetas gregos.
Esfahan é talvez o mais expressivo exemplo dessa inexplicável vocação dos povos do Irão para saírem de fases históricas trágicas para inovarem com imaginação e força criadora no campo da arte de viver.
Eu tinha lido muito sobre a antiga capital da Pérsia. Mas livros e imagens não podem transmitir o sortilégio de Esfahan.
O rio terá sido a primeira surpresa. O Zayandeh é um rio estranhíssimo. Desce dos cumes nevados da cordilheira do Zagros, percorre planícies que transforma num grande e fértil oásis, atravessa a cidade onde alarga muito e, após uma centena de quilómetros, morre nos areais do deserto.
São muitas as pontes seculares que o cruzam. Na mais bela, o rei que a concebeu fez instalar a meio, de cada lado, palacetes octogonais.
O Xá Abbas I, no final do século XVI, decidiu fazer de Esfahan a mais deslumbrante cidade do Islão. A sua fama correu mundo. Da China e da Índia do Grão Mogol Akbar, até da França longínqua chegaram viajantes e artistas para conhecerem o novo paraíso materializado pelo rei persa.
Nas esplanadas, sob uma das pontes seculares, moradores do bairro tomavam chá quando por ali passei num entardecer. O Zyandeh corria espumejante pelos canais, debaixo dos arcos, caindo em cascatas límpidas para um nível inferior onde retomava o seu curso remansoso. Nos degraus que desciam até à água centenas de pessoas, velhos e jovens, conversavam, sentados na pedra, gozando a frescura da hora, após um dia abafado.
Mais tarde, já noite fechada, o comércio ainda permanecia aberto. Os homens, em Esfahan, como em Teerão, vestem à europeia, mas no ambiente permanece muito da tradição oriental.
A cultura do renascimento safévida sobrevive na esmerada educação das pessoas, na sua atitude perante a existência, na arte de viver.
Por avenidas intensamente iluminadas caminhei até à Praça do Imã, construída há quatro séculos. Caberiam nela alguns Terreiros do Paço.Com uma extensão de 512 metros, a largura atinge 160. Mas não é somente uma das maiores do mundo. O cenário traz à memória contos das Mil e Uma Noites. A Praça Real, ou do Imã, como lhe chamam agora, tocou-me sobretudo pela harmonia, pelo equilíbrio, pela acumulação do inesperado.
Na noite morna, iluminadas, a cúpula turquesa da Mesquita Azul, a Mahjed-i--Sha, e a da Loftollah, introduziam ilusoriamente o passado no presente.
Apesar da hora tardia, centenas de pessoas permaneciam na Praça, movendo-se no interior do grande perímetro, fechado por um edifício rectangular de dois pisos, sob o qual a toda a volta correm arcadas para as quais se abriam centenas de lojas. Nos bancos, ao lado de canteiros floridos, junto de um grande espelho de água, casais namoravam e famílias inteiras ceavam, sentadas em tapetes colocados sobre a relva.
A visita aos palácios de recreio dos monarcas safevidas (o real, de quatro pisos, ergue-se a meio da Praça do Imã), sobretudo ao Chehel Sotun, onde quadros de grandes pintores persas evocam efemérides da dinastia, reforçou em mim a sensação da excepcionalidade de Esfahan.
Essa impressão de viajar através de uma cidade diferente de tudo o que conhecia acentuou-se na mesquita de Masdeh-i-Djomeh, o mais antigo templo da antiga capital. Em toda a Ásia muçulmana não há outra em que se justaponham, convivendo sem conflito, tantos estilos e decorações e épocas, da seljucida à safevida, passando pela mongol e a timurida.
Como foi possível aquilo? Na procura de algo similar recordei os esplendores de Al Andaluz e percebi que empalideciam na minha memória. Tive a percepção de que no mundo islâmico, qualquer paralelo com Esfahan, incluindo os monumentos da Índia Mogol, é redutor, desvaloriza aquilo que se compara.
Revi Persepolis, tão próxima de Esfahan no espaço, e tão distante como expressão de posicionamento do homem perante a aventura da vida.
E, contudo, paradoxalmente, Persepolis ajuda a compreender o desafio de Esfahan.
Naquela terra, a Pérsia, na cadeia de civilizações, por vezes com mundividências antagónicas, as grandes rupturas provocadas por invasões de povos vindos de muito longe, as destruições, as chacinas nunca impediram a lenta interacção das culturas. O que parecia morrer fecundou sempre aquilo que ali nascia em atmosfera com frequência trágica.
Os historiadores persas não esquecem – apenas um exemplo – que Tamerlão, o invencível conquistador turco chagatai, para castigar Esfahan, mandou erguer às portas da cidade sublevada pirâmides com 60 000 cabeças de moradores, num repugnante banho de sangue. A matança aconteceu no final do século XIV. Mas inesperadamente, décadas após a morte de Tamerlão, os netos enterraram as espadas e foram príncipes sábios, como o rei astrónomo Ulugh Begh, de Samarcanda, e outros timuridas que ergueram em Mached e Herat, no Korassão iraniano, algumas das mais belas mesquitas do mundo.
Esfahan, destruída por diferentes invasores – a primeira cidade já existia na época dos Sassânidas há 1700 anos – e sempre renascida, simboliza bem essa enigmática vocação persa para dar continuidade à vida e recriar cultura a partir dos escombros de civilizações golpeadas.
A sua estrela começou a brilhar quando um guerreiro do Norte, o Xá Ismail, fundou a dinastia safevida depois de travar definitivamente o avanço para Ocidente dos turcos usbeques. Caberia a um descendente seu, o Xá Abbas I, transferir a capital para o centro do país. Pretendia suplantar a Constantinopla de Solimão, o Magnífico. E concretizou o sonho. Contemporâneo de Henrique IV e de D João III, estabeleceu relações diplomáticas com Portugal.
Esfahan atraiu então os melhores arquitectos, ceramistas, pintores, artesãos, poetas e escultores iranianos, catalizando a energia criadora do génio persa. Meca continuou a atrair os devotos da fé; conhecer Esfahan tornou-se aspiração de outro tipo de peregrinos, artistas e intelectuais de todo o Islão.
Durou pouco mais de cem anos esse período de esplendor. No início do século XIII, com a monarquia safevida em processo de desagregação, tribos afegãs ocuparam Esfahan e devastaram a cidade.
A barbárie deixou marcas nos grandes monumentos. Alguns desapareceram. Mas a tradição persa funcionou. Esfahan curou as suas feridas e renasceu.
Na madrugada em que me despedi dela – há lugares que visitamos uma única vez – perguntava-me como foi possível criar na Pérsia quinhentista uma cidade tão maravilhosa e humanizada? Não idealizava. Certamente a presença do inferno coexistia ali com a visão do paraíso. Mas ao caminhar pela grande Praça recordei o quotidiano agressivo de Nova Iorque e a atmosfera tensa de uma cidade sem silêncios como Madrid e conclui que o discurso hipócrita sobre a civilização e o progresso não esconde que a humanidade está a ser empurrada para a barbárie.
George Bush ao ameaçar o Irão não pode compreender que é um bárbaro ao lado do Xá Abbas de quem provavelmente nunca ouviu falar.
Inicialmente essas colunas eram negras, mas é suficiente passar a mão nelas para que o mármore recupere a cor primitiva. A imaginação não consegue, porém, recriar o grande palácio, tal como o viam os embaixadores estrangeiros ao serem recebidos por Dario, o Rei dos Reis.
Dois mil e quinhentos anos nos separam da Pérsia dos Aquemenidas no seu máximo esplendor. As cidades do nosso tempo e a organização da vida são profundamente diferentes. Mas o homem mudou menos na sua atitude perante o Poder do que seria desejável.
Em Persepolis, como na Pasárgada de Ciro, naquela manhã, quando a imaginação tentou a viagem pelos séculos em esforço para compreender a ambição de Dario e o sentido dos seus actos, a minha meditação sobre a História findou no presente.
As ruínas magestáticas de Persepolis fizeram-me voar, em cavalgada mental, até à Casa Branca onde um homem investido de um poder imenso, muito menos inteligente do que o monarca aqueménida, retoma num mundo que se agigantou o sonho persa do Estado Universal.
Na plataforma sobre a qual fora edificado o conjunto palacial o calor era abrasador.
Não havia nuvens no céu, mas o azul pálido apresentava uma tonalidade cinza que feria o olhar quando este se perdia nas montanhas.
Pouco ali se ajustava ao esperado. Tudo me apareceu como se fora redescoberto. Na Apadana, na Sala das Nações, nos Palácios de Dario e Xerxes. No das Cem Colunas, ao identificar marcas do incêndio que destruiu Persepolis, subiu em mim a pergunta repetida por incontáveis gerações: Por que queimou Alexandre, um príncipe culto, aqueles palácios, mais grandiosos do que tudo o que ele conhecera na Grécia?
Os Anais, redigidos durante a conquista da Pérsia, não esclarecem a questão. São múltiplas as versões dos historiadores gregos. Vingança pelo saque de Atenas por Xerxes? Descontrole emocional no fim de uma orgia? Nunca a pergunta obterá resposta.
A única certeza é a de que no mundo antigo não se fez algo comparável a Persepolis. Aliás, povo algum voltou a erguer colunas tão altas como as da Apadana que sustentavam a 20 metros do solo tectos de madeira trabalhada. As descrições dos escritores gregos expressam o seu espanto ante a riqueza ofuscante das portas de bronze, do ouro do embasamento das colunas e dos cascos e cornos dos toiros. O luxo das vestes bordadas a ouro, a profusão de pedras preciosas, as tapeçarias, as pinturas murais, o cerimonial, tudo ali deslumbrava os embaixadores admitidos à presença do monarca que se apresentava como o senhor de trinta nações diferentes.
No túmulo de Dário
O sol descera muito no horizonte quando, caminhando por uma vereda de saibro, avistei a escarpa de Naqsh-i-Rostam. O calor ainda queimava os pulmões.
Foi o prolongamento do choque recebido em Persepolis, a escassos quilómetros de distância. É um lugar inimaginável.
Os antigos imperadores persas eram sepultados entre o céu e a terra A grande necrópole dos Aqueménidas nasceu de um desafio à imaginação.
Numa falésia de 64 metros de altura, quase vertical, abrem-se, escavados na rocha, os túmulos de Dario I, Xerxes, Artaxerxes I e Dario II.
O tom da pedra é de um ocre dourado, incomum.
O sepulcro de Dario atrai o visitante. É uma obra de arte estranhíssima com três registos sobrepostos. No relevo superior aparece, esculpido, Ahura Mazda, o deus do zoroastrismo, em luta permanente pelo bem contra o mal. Em baixo surge Dario no seu trono, perante um altar do fogo. O rei é transportado pelos representantes dos povos vassalos. O relevo médio tem quatro colunas com a porta da câmara mortuária a meio. Reproduz o palácio real.
Dario pretendeu em primeiro lugar transmitir a mensagem do poder.
Em diferentes inscrições rupestres aparece a afirmação de um poder pessoal sem limites: «Eu sou Dario, o Grande Rei, o Rei dos Reis, o Rei do país de todas as raças, Rei sobre esta grande Terra que se estende muito longe, o filho de Hystapes, um Aqueménida, um persa, um ariano de origem ariana.»
A reivindicação do arianismo era, porém, contraditória. Dario não esquecia que os Persas e os Medos formavam a coluna vertebral do poder aqueménida. Mas o Império era um estado multinacional, amálgama de povos com culturas e religiões diferentes, que gozavam de ampla autonomia. O seu arianismo nada tinha de comum com o enaltecido por Hitler. Uma política racista teria destruído uma estrutura estatal frágil como a da Pérsia Aqueménida. Na época de Xerxes, o império, transcontinental, ia do Danúbio ao Indo, da Ásia Central às cataratas do Nilo, reunindo territórios com aproximadamente 5 milhões de quilómetros quadrados.
Contemplando as ruínas dos monumentos grandiosos dessa civilização agitavam-me sentimentos contraditórios. Uma sensação de irrealidade perturbava-me. Como fora possível que naquelas solidões, entre montanhas onde a neve nunca desaparece e desertos incompatíveis com qualquer forma de vida, um povo ainda tribal, vindo do Cáucaso, mobilizado por um rei de ambição planetária, tivesse sido o instrumento da primeira tentativa de Estado Universal?
Em Naqsh-i-Rustam recordei que Dario tinha vivido o suficiente para compreender que o seu projecto de Estado Mundial era muito mais difícil de concretizar do que imaginara. A derrota na Grécia terá sido uma advertência sobre os limites do seu poder.
Mas o filho, Xerxes, retomou o sonho e o resultado foi um novo e definitivo fracasso.
Transcorridos apenas 130 anos, um príncipe estrangeiro, vindo de um pequeno e pobre país europeu, a Macedónia, chegou e fez do impossível realidade: conquistou o Império do Rei dos Reis. Mas o desafio de Alexandre durou ainda menos que o dos Aquemenidas. Desfez-se quando ele morreu aos 32 anos.
O mundo surgia então aos sábios da época como muito pequeno, o que ajuda a compreender as ambições daqueles que pretendiam governá-lo. Para os contemporâneos dos persas e gregos findava a Norte nas águas do Cáspio e a Sul nas florestas impenetráveis da Índia; para Ocidente continuava pela África ate às cataratas do Nilo, mas as terras além do deserto líbico eram quase despovoadas; longíssimo, para Oriente, estava a China.
Os sassânidas
Bishapur, nas terras quentes do Sudoeste iraniano, apareceu-me como conjunto de ruínas de difícil identificação. A solidez das muralhas impressiona, mas da vasta área onde antes havia casas e templos, pouco resta.
As aparências enganam. Ali existiu uma estranha cidade. Foi construída não por persas, mas por legionários romanos em meados do século III da Nossa Era.
Roma iniciava a sua lenta decadência quando um grande exército, sob o comando do imperador Valeriano, foi derrotado no seu primeiro choque com uma potência que iria tornar-se hegemónica na região: a Pérsia Sassânida.
O acontecimento abalou o mundo antigo. Cerca de 40 000 legionários e o imperador renderam-se e foram conduzidos ao lugar cujas ruínas eu contemplava. No descampado, como prisioneiros, construíram uma cidade que recebeu o nome de Shapur, o vencedor de Roma.
Por que fui até ali na minha caminhada por terras do Irão?
Talvez para sentir, mais na atmosfera do que nas pedras, o fenómeno do primeiro dos muitos renascimentos persas. O povo de Ciro e Dario, após a conquista de Alexandre, tinha adormecido num sono letárgico, com as suas elites helenizadas. E, de repente, 550 anos após a destruição de Persepolis, uma dinastia, os Sassânidas, orgulhosa das suas origens, reconstrói um Império que promove o renascimento persa. Durante quatro séculos impõe-se militarmente, primeiro a Roma, e, depois a Bizâncio.
A Europa continua a desconhecer o que deve à Pérsia Sassânida. A arrogância eurocêntrica não apaga, porém, a história. A arte islâmica, após o início do Califado Abassida, foi decisivamente influenciada pela herança persa. Em múltiplos campos a contribuição da cultura sassânida para o desenvolvimento da civilização árabe não fica aliás aquém da greco-romana.
A cavalaria pesada, assim como o feudalismo, tem raízes iranianas. E foi igualmente persa a primeira reforma agrária da história, implantada pela revolução mazdaquista que estabeleceu uma modalidade de comunismo primitivo, reprimida com ferocidade.
Os Sassânidas também deixaram gravados em belos relevos rupestres a sua concepção do poder. Impressionaram-me os que vi próximo de Bishapur. Não há muitos exemplos de um deus ter cumprido como Ahura Mazda uma função tão importante na caminhada de um povo. Ao fundirem-se praticamente com ele, assumindo origem divina, os monarcas Sassânidas imprimiram ao Estado um carácter teocrático que os diferenciou dos Aqueménidas.
Os relevos sassânidas sobreviveram a incontáveis invasões e guerras. Esculpidos na pedra para expressar uma ambição de poder eterno, documentam hoje a brevidade dos grandes impérios e a irracionalidade de certas ambições humanas. O esboço do Estado Universal de Dario durou dois séculos. O Império Sassânida foi vencido e destruído em apenas quatro anos por um povo de nómadas, vindo das areias do deserto arábico.
Era difícil, ao visitar ruínas das grandes civilizações persas da Antiguidade, não pensar na actual crise de civilização que a humanidade enfrenta.
Meditei ali sobre a arrogância imperial dos EUA e a estratégia de dominação planetária de Bush, um pequeno homem, de muito poder e escassa inteligência.
Recordei as ameaças que dirige ao Irão, apresentando-se como representante da civilização e da cultura, ele que é um moderno bárbaro.
Vai durar pouco o império dos EUA. Terá o desfecho de quantos o precederam.
Esfahan e a visão do paraíso
Na periferia da cidade de Kashan subi a umas colinas arenosas onde há 7 000 anos existiu uma povoação, Sialk. No pequeno museu próximo vi fragmentos de uma cerâmica decorada que em objectos caseiros já então usava cores.
No Irão, a antiguidade da presença do homem impressiona e comove pela densidade dos vestígios que a testemunham.
No grande planalto, cruzado durante milénios por invasores vindos de todos os azimutes, parcelas das heranças culturais acumuladas sobreviveram sempre a períodos de violência e barbárie. Desde Sialk houve ali continuidade, por vezes quase invisível, na criação de coisas belas. Sementes de civilizações destruídas ou rudemente golpeadas fecundaram outras que, em cadeia quase ininterrupta, nasceram nos oásis e estepes emoldurados por montanhas ciclópicas.
Os reis Aqueménidas diziam que o Paraíso foi inventado por eles. A palavra, antiquíssima, surgiu na língua persa no tempo de Ciro, o Grande, para designar os jardins do seu palácio de Pasárgada, E ficou. A ideia do paraíso permaneceu associada à beleza de jardins cuja atmosfera e encanto mágico já eram cantados pelos poetas gregos.
Esfahan é talvez o mais expressivo exemplo dessa inexplicável vocação dos povos do Irão para saírem de fases históricas trágicas para inovarem com imaginação e força criadora no campo da arte de viver.
Eu tinha lido muito sobre a antiga capital da Pérsia. Mas livros e imagens não podem transmitir o sortilégio de Esfahan.
O rio terá sido a primeira surpresa. O Zayandeh é um rio estranhíssimo. Desce dos cumes nevados da cordilheira do Zagros, percorre planícies que transforma num grande e fértil oásis, atravessa a cidade onde alarga muito e, após uma centena de quilómetros, morre nos areais do deserto.
São muitas as pontes seculares que o cruzam. Na mais bela, o rei que a concebeu fez instalar a meio, de cada lado, palacetes octogonais.
O Xá Abbas I, no final do século XVI, decidiu fazer de Esfahan a mais deslumbrante cidade do Islão. A sua fama correu mundo. Da China e da Índia do Grão Mogol Akbar, até da França longínqua chegaram viajantes e artistas para conhecerem o novo paraíso materializado pelo rei persa.
Nas esplanadas, sob uma das pontes seculares, moradores do bairro tomavam chá quando por ali passei num entardecer. O Zyandeh corria espumejante pelos canais, debaixo dos arcos, caindo em cascatas límpidas para um nível inferior onde retomava o seu curso remansoso. Nos degraus que desciam até à água centenas de pessoas, velhos e jovens, conversavam, sentados na pedra, gozando a frescura da hora, após um dia abafado.
Mais tarde, já noite fechada, o comércio ainda permanecia aberto. Os homens, em Esfahan, como em Teerão, vestem à europeia, mas no ambiente permanece muito da tradição oriental.
A cultura do renascimento safévida sobrevive na esmerada educação das pessoas, na sua atitude perante a existência, na arte de viver.
Por avenidas intensamente iluminadas caminhei até à Praça do Imã, construída há quatro séculos. Caberiam nela alguns Terreiros do Paço.Com uma extensão de 512 metros, a largura atinge 160. Mas não é somente uma das maiores do mundo. O cenário traz à memória contos das Mil e Uma Noites. A Praça Real, ou do Imã, como lhe chamam agora, tocou-me sobretudo pela harmonia, pelo equilíbrio, pela acumulação do inesperado.
Na noite morna, iluminadas, a cúpula turquesa da Mesquita Azul, a Mahjed-i--Sha, e a da Loftollah, introduziam ilusoriamente o passado no presente.
Apesar da hora tardia, centenas de pessoas permaneciam na Praça, movendo-se no interior do grande perímetro, fechado por um edifício rectangular de dois pisos, sob o qual a toda a volta correm arcadas para as quais se abriam centenas de lojas. Nos bancos, ao lado de canteiros floridos, junto de um grande espelho de água, casais namoravam e famílias inteiras ceavam, sentadas em tapetes colocados sobre a relva.
A visita aos palácios de recreio dos monarcas safevidas (o real, de quatro pisos, ergue-se a meio da Praça do Imã), sobretudo ao Chehel Sotun, onde quadros de grandes pintores persas evocam efemérides da dinastia, reforçou em mim a sensação da excepcionalidade de Esfahan.
Essa impressão de viajar através de uma cidade diferente de tudo o que conhecia acentuou-se na mesquita de Masdeh-i-Djomeh, o mais antigo templo da antiga capital. Em toda a Ásia muçulmana não há outra em que se justaponham, convivendo sem conflito, tantos estilos e decorações e épocas, da seljucida à safevida, passando pela mongol e a timurida.
Como foi possível aquilo? Na procura de algo similar recordei os esplendores de Al Andaluz e percebi que empalideciam na minha memória. Tive a percepção de que no mundo islâmico, qualquer paralelo com Esfahan, incluindo os monumentos da Índia Mogol, é redutor, desvaloriza aquilo que se compara.
Revi Persepolis, tão próxima de Esfahan no espaço, e tão distante como expressão de posicionamento do homem perante a aventura da vida.
E, contudo, paradoxalmente, Persepolis ajuda a compreender o desafio de Esfahan.
Naquela terra, a Pérsia, na cadeia de civilizações, por vezes com mundividências antagónicas, as grandes rupturas provocadas por invasões de povos vindos de muito longe, as destruições, as chacinas nunca impediram a lenta interacção das culturas. O que parecia morrer fecundou sempre aquilo que ali nascia em atmosfera com frequência trágica.
Os historiadores persas não esquecem – apenas um exemplo – que Tamerlão, o invencível conquistador turco chagatai, para castigar Esfahan, mandou erguer às portas da cidade sublevada pirâmides com 60 000 cabeças de moradores, num repugnante banho de sangue. A matança aconteceu no final do século XIV. Mas inesperadamente, décadas após a morte de Tamerlão, os netos enterraram as espadas e foram príncipes sábios, como o rei astrónomo Ulugh Begh, de Samarcanda, e outros timuridas que ergueram em Mached e Herat, no Korassão iraniano, algumas das mais belas mesquitas do mundo.
Esfahan, destruída por diferentes invasores – a primeira cidade já existia na época dos Sassânidas há 1700 anos – e sempre renascida, simboliza bem essa enigmática vocação persa para dar continuidade à vida e recriar cultura a partir dos escombros de civilizações golpeadas.
A sua estrela começou a brilhar quando um guerreiro do Norte, o Xá Ismail, fundou a dinastia safevida depois de travar definitivamente o avanço para Ocidente dos turcos usbeques. Caberia a um descendente seu, o Xá Abbas I, transferir a capital para o centro do país. Pretendia suplantar a Constantinopla de Solimão, o Magnífico. E concretizou o sonho. Contemporâneo de Henrique IV e de D João III, estabeleceu relações diplomáticas com Portugal.
Esfahan atraiu então os melhores arquitectos, ceramistas, pintores, artesãos, poetas e escultores iranianos, catalizando a energia criadora do génio persa. Meca continuou a atrair os devotos da fé; conhecer Esfahan tornou-se aspiração de outro tipo de peregrinos, artistas e intelectuais de todo o Islão.
Durou pouco mais de cem anos esse período de esplendor. No início do século XIII, com a monarquia safevida em processo de desagregação, tribos afegãs ocuparam Esfahan e devastaram a cidade.
A barbárie deixou marcas nos grandes monumentos. Alguns desapareceram. Mas a tradição persa funcionou. Esfahan curou as suas feridas e renasceu.
Na madrugada em que me despedi dela – há lugares que visitamos uma única vez – perguntava-me como foi possível criar na Pérsia quinhentista uma cidade tão maravilhosa e humanizada? Não idealizava. Certamente a presença do inferno coexistia ali com a visão do paraíso. Mas ao caminhar pela grande Praça recordei o quotidiano agressivo de Nova Iorque e a atmosfera tensa de uma cidade sem silêncios como Madrid e conclui que o discurso hipócrita sobre a civilização e o progresso não esconde que a humanidade está a ser empurrada para a barbárie.
George Bush ao ameaçar o Irão não pode compreender que é um bárbaro ao lado do Xá Abbas de quem provavelmente nunca ouviu falar.