Defesa Nacional e Forças Armadas

Lógicas perigosas e reveladores silêncios

Rui Fernandes
O conjunto de medidas e directivas que vão saindo para a administração pública, no quadro da vasta ofensiva que contra ela está lançada, vão também fazendo caminho em matéria de enquadramento futuro das carreiras dos militares. Desde logo a intenção de suprimir os diferentes suplementos remuneratórios existentes e cuja criação visou introduzir compensações resultantes de especiais situações de exigência profissional. É que uma coisa é admitir se que exista necessidade de correcções e outra, bem diferente, é a sua supressão, com base numa lógica igualitária, cujo único sentido é, mais uma vez, a lógica da poupança.
Os impactos para a saúde de um militar mergulhador, piloto da FAP no exercício efectivo da função, submarinista, etc., não é a mesma do que a de outros militares noutras situações. Qualquer consideração de que tais suplementos são formas opacas de assegurar acréscimos à remuneração base será um perfeito disparate.
Tal como não se vê como compaginar o princípio da carreira, com condicionamentos assentes em razões de avaliação do mérito ou disponibilidades orçamentais, nomeadamente no caso das promoções por antiguidade. Tal concepção, traduzir se ia no princípio de que não se promove porque não há orçamento e tal conduziria à banalização funcional, de modo a permitir a generalização do princípio de militares de posto inferior poderem executar funções que são de posto superior e, em última análise, para que tal problema não tivesse lugar, acabar mesmo com as definições funcionais, dando espaço ao livre arbítrio da gestão sem mais encargos. E poderia igualmente conduzir à generalização das promoções por escolha onde o factor subjectivo ganha expressão significativa, para mais generalizada a aplicação do novo sistema de avaliações da administração pública.
A aplicação às forças armadas de uma lógica empresarial, no prosseguimento de uma errada lógica padrão, assente nas mesmas premissas, a aplicar à administração pública, constituirá um golpe profundo na sua natureza e fundamentos. Relativamente a isto não se ouvem os que, a propósito do associativismo militar, bramem pela coesão e disciplina. Podem as FFAA e os militares, serem cada vez mais tratados como uns funcionários como quaisquer outros que isso não tem importância, desde que o poder disciplinar discricionário exista.

Disciplina e confusionismo

Paralelamente, vai tendo lugar uma crescente troca de ideias acerca das questões ligadas com a disciplina, em resultado da decisão do Tribunal de Sintra e mais recentemente do de Almada em ordenar a libertação de militares.
Algumas das linhas que vieram a público, mistificatórias e falseando os dados do problema, são as de que um comandante sem poder disciplinar não o pode ser ou a de que, a generalizar se os recursos para tribunal, teremos as escalas de serviço suspensas, o embarque de tropas adiado, etc.. Ora, quem assim aborda tal matéria ou é inconsciente ou fá lo com propósitos confusionistas, mas nunca procurando seriamente reflectir e contribuir para a definição de um caminho.
Importa ter presente que uma coisa é a disciplina militar e outra a justiça militar.
A justiça está ligada a crimes e tem uma tramitação própria. Daí que não se possa aceitar que um militar que, por exemplo, defraudou o Estado em milhares de euros, se veja castigado disciplinarmente quando tal matéria é do foro da justiça e das decisões dos tribunais. Por isso, existem orientações que aconselham a que nestes casos sejam suspensos os percursos disciplinares, na medida em que decorrem os percursos judiciais, desde logo por duas ordens de razões: a primeira, porque pode não existir lugar para condenação e não faz sentido que um militar (ou qualquer cidadão), seja castigado disciplinarmente por um facto que, depois, um Tribunal não confirma porque não prova. O segundo, porque confirmando o Tribunal a culpa, não faz sentido a mesma pessoa ser punida duas vezes. Até porque esse castigo a aplicar pelo Tribunal, terá necessariamente reflexos na avaliação desse militar para efeitos de promoção e, pode até, colocar a questão da sua expulsão da instituição.
No que respeita à disciplina, e sobre as decisões agora tomadas por ambos os tribunais, temos as razões que determinaram estes castigos disciplinares em concreto e que têm origem, na insatisfação dos militares face ao incumprimento por parte do governo de um conjunto diverso de legislação. Isto, num quadro legal em que as associações socioprofissionais têm direitos que não são respeitados e em que os militares, em si mesmos, gozam também de direitos gerais de cidadania que têm de ser respeitados. Ora, tais punições disciplinares não decorrem de nenhuma quebra de responsabilidades funcionais, não decorrem de nenhuma quebra de ordens dadas em serviço e por razões de serviço. Querer remeter tal matéria para esta lógica, é exactamente a questão central de tudo, desde logo da forma como são encaradas as associações e o seu papel, bem como os referidos direitos dos militares enquanto cidadãos. As associações são entidades de direito privado e não estruturas das forças armadas sujeitas à hierarquia.
Por fim, há a questão de se saber se as penas privativas da liberdade consignadas no RDM têm enquadramento constitucional e se os castigos disciplinares devem obedecer a um mesmo quadro e idêntica tramitação, em tempo de paz ou em tempo de guerra, com militares situação de paz ou em situação de guerra ou operacional.
Portanto, querer comparar ou intencionalmente remeter para um foro funcional de cadeia de comando a execução da disciplina, no caso de uma deserção, de não cumprimento de uma escala de serviço, de recusa a um exercício, de não se fardar correctamente, etc., e um caso resultante de uma actividade cívica dos militares enquanto cidadãos, fora das unidades militares, é pretender confundir, com claros intuitos de gerar um clima favorável aos interesses de quem detesta e rejeita o associativismo militar de carácter sócio profissional. É simultaneamente passar um atestado de menoridade aos militares. É, por fim, não ter nenhuma medida valorativa sobre as penas, considerando a privação da liberdade absolutamente natural.
É tudo isto que está na génese, entre outras, das afirmações do Gen. Espírito Santo ou do Tenente Coronel Brandão Ferreira para o qual a evolução das forças armadas parou em 1641. É isto que está igualmente subjacente a um conjunto de atitudes do Alm. CEMA cuja gravidade pelo cargo que ocupa não pode ser apagado. Por fim, mas não menos importante, a ideia atribuída ao MDN de que poderia estar a equacionar uma alteração legislativa, visando impedir o recurso aos tribunais por parte dos militares, em matérias de natureza disciplinar porque «sem disciplina não existem forças armadas e sem forças armadas não existe Estado de direito». Isto é, blindar as FFAA ao recurso aos tribunais em matéria disciplinar. Tal pensamento levanta um grave problema, mais grave ainda porque é colocado por um ministro, que é o de se saber se dos actos administrativos – porque é esse o caso do foro disciplinar – não há outro recurso que não seja o hierárquico resultante da cadeia de comando e como se compagina isso com a Constituição da República Portuguesa que no seu artigo 20.° diz que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos». Não se compagina! E insiste se na interrogação, sobre se devem continuar a figurar no plano disciplinar penas privativas da liberdade. Atente se que a GNR, que muitos teimam em considerar militar, que vai para missões externas, etc., não tem penas privativas da liberdade no seu regime disciplinar.
Sabem os militares e o povo que os direitos defendem se exercendo os. E porque estamos tão próximo das comemorações do 25 de Abril, vamos pois consciente e mobilizadamente exercê los.


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