
- Nº 1766 (2007/10/4)
A fuga para a frente
Argumentos
Na área das religiões, a semana que passou revelou-se fértil em notícias que parecem ter pouca importância mas que, vistas de perto, são elucidativas quanto às estratégias da igreja no e das religiões no espaço político-económico.
Veja-se, por exemplo, exemplo a Birmânia, rica em jazidas de gás natural, porta de entrada para o petróleo que a China importa e onde o Budismo mais conservador tem grande influência no povo birmanês. Governam o país, desde 1962, repressivas juntas militares. Galopa a inflação resultante dos gastos públicos sumptuários. Mas os budistas só de tempos a tempos se lembram de reclamar. Sempre de forma cordata, pois são pacifistas. Mas agora, China, Índia e Tailândia disputam o gás natural birmanês. Os EUA e a União Europeia agravam as sanções. O povo agita-se. É altura dos monges e dos estudantes de teologia avançarem, antes que seja tarde e o povo tome a iniciativa da revolta.
É uma «fuga para a frente». Mais uma vez se prova que as religiões são reflexo das impotências sociais e económicas sentidas pelos homens.
Quanto ao mais, no mundo satélite do capitalismo clerical tudo parece caminhar a velocidade de cruzeiro. O movimento financeiro do Vaticano intensificou o processo de fusões de capitais próprios e comprou grandes bancos em Espanha, na Itália e nos Estados Unidos. É já uma enorme potência financeira. O poder do dinheiro eclesiástico impera nos quatro cantos da terra.
Agora, parece fazer caminho a imposição aos católicos do pagamento compulsivo do «dízimo», como já acontece em Moçambique e nalgumas paróquias dispersas em Portugal. Se a moda pegar, não é brinquedo nenhum o que o Vaticano irá receber. Serão 800 milhões a doar ao papa 10% daquilo que recebem ...
Por enquanto, esta doutrina não é oficial. Mas são balões de ensaio, jogadas de antecipação. A igreja instala o «facto consumado» antes dele ter espaço legal. São «fugas para a frente» que estão na base de grandes êxitos futuros.
Os acontecimentos em Portugal
Também o nosso país foi palco de uma movimentação católica digna de registo. Por razões de espaço, citam-se apenas dois acontecimentos, ambos com principal incidência na área da Saúde.
As «listas de espera» para actos cirúrgicos continuam incontroláveis. Nomeadamente em Oftalmologia, com prejuízo dos doentes, sobretudo dos idosos que, como é óbvio, pouco tempo têm para esperar. Então, os autarcas de Vila Real de Santo António reflectiram e decidiram agir. Geminaram a sua cidade com um município dos subúrbios de Havana e promoveram a ida a Cuba de grupos de doentes que esperavam, há quatro ou cinco anos, por uma operação. Conhece-se a excelência da cirurgia cubana. Mas Cuba é socialista. Tanto bastou para irritar os bispos portugueses. No presidente da União das Misericórdias acordou o nacionalismo: «Não há necessidade de recorrer aos médicos estrangeiros quando temos médicos e equipamentos disponíveis em Portugal.» Logo ali foi redigida uma proposta com vistas a criar uma parceria entre o Estado e as Misericórdias que acabe de vez com as listas de espera em oftalmologia. Basta, afinal, a assinatura de um protocolo de cooperação entre as duas partes. São 30 mil os portugueses que aguardam uma operação aos olhos. Mas às Misericórdias, o que interessa é a consolidação das bases daquela ideia, já avançada por M. J. Nogueira Pinto, da partilha com a Igreja dos poderes do Estado em toda a área social.
É novamente a «fuga para a frente». Atrás de uma ideia secundária, está a «outra» ideia.
Caso digno de reparo é o da «questão das capelanias». Se o estatuto dos capelães no enquadramento de um Estado laico é sempre problemático, os pontos de atrito agravam-se com a existência de concordatas, sempre incompatíveis com o princípio constitucional da separação de poderes. A Constituição estabelece a autonomia das confissões quanto à sua própria organização e à obrigação do Estado respeitar a liberdade do exercício das religiões e dos cultos. Mas o Estado não pode privilegiar qualquer confissão. A função das capelanias deve ser garantida àqueles que delas declararem necessitar. Mas os encargos inerentes não devem ser suportados pelo Estado laico. A Constituição proíbe-o.
Vem depois a Concordata que atribui ao Estado o encargo de pagar aos capelães dos hospitais, prisões, asilos, lares, universidades públicas, etc., vencimentos compatíveis com as suas funções. Constituição laica e Concordata são incompatíveis. Para o Estado de Direito, a Constituição é soberana. Mas para a Igreja, a Concordata sobrepõe-se à Constituição. Ou uma, ou outra, é isto que está em causa. A «guerra dos capelães» oculta um novo salto da igreja no sentido do poder.
A fórmula é: construir o «facto político» e «fugir para a frente».
Jorge Messias