Wellcome caridade
Foi um dia de grande movimento, e a televisão mostrou. À porta das grandes superfícies comerciais, e porventura não só, mulheres e homens de boa vontade, jovens ou não, recolheram dádivas que outros, muitos mais, lhes entregavam para posterior distribuição entre os carenciados. Não se tratava de dinheiro, por muito que também dele possam precisar os chamados beneficiários da operação, mas sim de géneros alimentares aliás adquiridos ali mesmo, no lugar à porta do qual era feita a recolha. Tratava-se de uma iniciativa do Banco Alimentar Contra a Fome que, segundo nos foi dito no decurso de uma das breves reportagens feitas, pelo seu apoio permanente evita que muitos milhares de portugueses passem fome, ou talvez que passem ainda mais fome. E foram-nos ditas mais coisas, importantes coisas. Que, ao contrário do que talvez suponha a generalidade das gentes ou pelo menos os que andam por aí distraídos, mais atentos ao que acontece nas telenovelas do que ao que se passa na rua onde moram ou na travessa um pouco mais abaixo, os que hoje correm o risco de passar fome ou que a passam mesmo não são apenas os idosos que recebem aquelas pensões adequadamente chamadas “de miséria” ou os que tendo mais de quarenta e poucos anos perderam o emprego há já longo tempo ou os que por qualquer outro motivo foram atirados para zonas de exclusão social: que hoje são rondados pela fome ou por ela visitados portugueses que há pouco tempo ainda não suspeitavam sequer que estavam à beira desse risco. E também foi dito por um comentador decerto competente e, por sinal, aparentemente intocado pelo dramatismo da situação, que não há razões para supor que situações destas venham a reduzir-se substancialmente. Porque, como ele gentilmente explicou, o mundo mudou, já não é o que era. Talvez tivesse podido acrescentar: nem o que parecia estar à beira de passar a ser.
O recurso que resta
Ora, que o mundo mudou já repetidamente nos tem sido dito, designadamente pela TV, tendo a informação sido complementada com alguns dados esclarecedores e exemplificativos: que o Estado-Providência (que, exactamente, entre outros fardos tinha o de proteger os cidadãos contra a fome) era um projecto disparatado e de todo incompatível com a modernidade; que o objectivo que qualquer cidadão teria de ficar empregado a vida inteira se tornou uma ambição desvairada e insuportável (excepto, naturalmente, para os gestores de empresas com boa dimensão). Assim, é neste mundo diferente e forçoso, porque sem alternativa, que emerge, imparável, a substituição da cidadania fraterna pela caridade, embora esta palavra seja correntemente substituída por «solidariedade», tida como mais apresentável. Trata-se, porém, mais de uma medida cosmética que de um esforço no sentido do rigor semântico. Na verdade, solidariedade tem-se para com um amigo que foi injustiçado, um camarada de trabalho que foi despedido, um grupo de trabalhadores que entrou em greve, um amigo que circunstâncias cruéis feriram. Mas quando se dá uma moeda a um pedinte ou um pouco de comida a quem no-la peça à porta da nossa casa, só por eufemismo ou patetice diremos que se praticou um acto de solidariedade: terá sido de caridade, isso sim, e nem sequer da Caridade que está inscrita no catecismo cristão como uma das três virtudes teologais e por isso tem o direito de usar inicial maiúscula. Neste quadro, é claro que os pacotes de arroz ou de massa que cidadãs e cidadãos de bom coração entregam à porta de supermercados para reduzir fomes distantes são de facto, esmolas, dispensando embora a moeda intermediária. Não é vergonha para quem dá nem será vergonha para quem venha a receber, mas parece conveniente que não confondamos as coisas. E já agora, que talvez estejamos em momento de clarificação e de caminho para a lucidez, perguntemo-nos se pode ser minimamente satisfatória, porto de chegada de qualquer rota, uma sociedade em que a actividade sem dúvida generosa de um Banco Alimentar Contra a Fome cada vez mais se afirma como necessária; em que essa necessidade é imposta pelo facto de ter sido suprimido o emprego certo, o Estado eficazmente protector, a efectiva solidariedade entre todos os cidadãos. Em que a caridade, mesmo sob pseudónimo, é o recurso que resta.
O recurso que resta
Ora, que o mundo mudou já repetidamente nos tem sido dito, designadamente pela TV, tendo a informação sido complementada com alguns dados esclarecedores e exemplificativos: que o Estado-Providência (que, exactamente, entre outros fardos tinha o de proteger os cidadãos contra a fome) era um projecto disparatado e de todo incompatível com a modernidade; que o objectivo que qualquer cidadão teria de ficar empregado a vida inteira se tornou uma ambição desvairada e insuportável (excepto, naturalmente, para os gestores de empresas com boa dimensão). Assim, é neste mundo diferente e forçoso, porque sem alternativa, que emerge, imparável, a substituição da cidadania fraterna pela caridade, embora esta palavra seja correntemente substituída por «solidariedade», tida como mais apresentável. Trata-se, porém, mais de uma medida cosmética que de um esforço no sentido do rigor semântico. Na verdade, solidariedade tem-se para com um amigo que foi injustiçado, um camarada de trabalho que foi despedido, um grupo de trabalhadores que entrou em greve, um amigo que circunstâncias cruéis feriram. Mas quando se dá uma moeda a um pedinte ou um pouco de comida a quem no-la peça à porta da nossa casa, só por eufemismo ou patetice diremos que se praticou um acto de solidariedade: terá sido de caridade, isso sim, e nem sequer da Caridade que está inscrita no catecismo cristão como uma das três virtudes teologais e por isso tem o direito de usar inicial maiúscula. Neste quadro, é claro que os pacotes de arroz ou de massa que cidadãs e cidadãos de bom coração entregam à porta de supermercados para reduzir fomes distantes são de facto, esmolas, dispensando embora a moeda intermediária. Não é vergonha para quem dá nem será vergonha para quem venha a receber, mas parece conveniente que não confondamos as coisas. E já agora, que talvez estejamos em momento de clarificação e de caminho para a lucidez, perguntemo-nos se pode ser minimamente satisfatória, porto de chegada de qualquer rota, uma sociedade em que a actividade sem dúvida generosa de um Banco Alimentar Contra a Fome cada vez mais se afirma como necessária; em que essa necessidade é imposta pelo facto de ter sido suprimido o emprego certo, o Estado eficazmente protector, a efectiva solidariedade entre todos os cidadãos. Em que a caridade, mesmo sob pseudónimo, é o recurso que resta.