Para Calderon de la Barca, dramaturgo espanhol (1600-1681), autor da obra de onde roubei o título desta história. Não tinha televisão
Olhou-se ao espelho e viu um tronco bem desenhado e uns abdominais esculpidos por duas horas de ginásio diárias. Não gostava de se comparar com futebolistas e gente dessa, mas tinha que admitir que o seu corpo era mais perfeito que o desse Cristiano Ronaldo, que ganhava a vida a correr atrás duma bola. Uma vergonha!
Vestiu uns
boxers e uma camisa de algodão grosso, tudo de
Calvin Klein. Depois uns jeans e um casaco de veludo azul ambos de
Karl Lagerfeld. Normalmente o Karl é muito exagerado, mas aquelas peças eram incrivelmente simples e boas. Calçou umas meias de algodão escocês e depois uns sapatos casual, tremendamente informais de
Blanik. Decidiu ir sem gravata e olhou-se no espelho: estava perfeito.
Penteou-se depois de ter massajado o cabelo com
Pure-performance, de
Avena, que dava brilho e controlo ao cabelo e perfumou-se levemente. Estava pronto.
Tânia passou também pelo ritual do banho e começou a vestir-se. Escolheu um
soutien e uma micro-tanga, tudo de
Victoria’s Secret, obviamente. Depois uma camisa meia manga, branca, de seda fantasticamente elegante de
Carolina Herrera. Vestiu umas calças de cabedal muito justas e afuniladas de
Guess e um casaco de seda estampada imitando pele de leopardo, forrado com tecido de algodão e com ombreiras salientes. Era uma peça de
Dolce & Gabbana e ela adoraaaava
Dolce & Gabbana. Calçou uns botins com pequenas aplicações de leopardo, de
Ras.
Passou à maquilhagem. Como tinha cortado o cabelo muito curto e o penteava como um homem, estilo anos 30, aplicou o mesmo produto que Rodrigo, o
Pure-performance, fez o risco ao lado e alinhou o cabelo. Os olhos foram tratados com uma sombra muito escura, quase negra na pálpebra, marcou as sobrancelhas e sublinhou o contorno dos olhos tudo de negro. Utilizou sempre os produtos do
Bobbi Brown a que era adicta.
A sua pele era morena e o cabelo e os olhos negros, pelo que quase não retocou a cara, para que o contraste fosse maior. Pintou os lábios com o último
Rouge Passion cintilante de
Chanel.
Viu-se ao espelho. A imagem que queria dar de andrógina e selvagem, de olhos inquietantes, estava conseguida. Percebia também que, como queria, estava altamente provocadora. Tânia sabia-se óptima nas distâncias curtas. Para rematar esta ideia, pôs uma gargantilha de prata lisa, que na parte frontal teria uns três centímetros e ia diminuindo até ao fecho. Igualmente pôs no braço esquerdo um aro de uns dez centímetros, também de prata lisa. Estas jóias comprava-as no seu joalheiro que a tinha informado trazê-las da Índia, para as suas clientes mais especiais. Tânia sentia-se meio indígena cada vez que punha aquelas peças.
Era praticamente uma da tarde e viu pela janela que Rodrigo a esperava. Desceu. Entrou no carro deram-se um beijo, que permitiu que ele identificasse a
Eau par Kenzo dela e ela a
Eau d’Issey dele.
Tânia disse-lhe: «mas você está cada vez mais louco!!!! Pensava que vinha no
Porsche e aparece-me com este
BMW X5 descapotável. Que é iiisto?» Rodrigo, fingindo uma normalidade falsa disse: «Para uma grande amiga como a Tânia, comprei este carro, para que se sinta mais livre junto a mim». «Adulador, você é um adulador, mas adoooro !!!»
Chegaram ao restaurante. O
Maitre recebeu-os à porta e instalou-os numa mesa discreta e íntima. O
Soumellier aproximou-se e propôs algum aperitivo. Escolheram um mini
mojito, para ela e um
Martini Dry para ele, depois de haver-se assegurado de que o
gin era
Blue Saphire da
Bombay e o
vermute Noilly-Prat branco ultra seco.
O
Maitre reapareceu e, a convite de Rodrigo, propôs para a senhora um taco de lombo de garoupa, com flor de sal, que marcavam na chapa sobretudo do lado da pele, que se tornava uma delícia estaladiça. Depois de alguns minutos, passando pelo calor os outros lados do peixe, ia ao forno uns cinco minutos, praticamente só para dourar umas sementes de sésamo que encimavam o peixe e lhe davam um toque exótico. Acompanhando umas pontas de espargos, com um molho de manteiga, natas e oh! surpresa, um pouco de mostarda de Dijon, tudo muito suave e equilibrado.
Para Rodrigo, propunha um lombinho de javali, grelhado com lume forte para ficar crocante por fora e sumarento por dentro, com pimentas negra e rosa moídas na altura, acompanhado por umas batatas fritas às rodelas que cobriam com uma
persillade, ou seja salsa e alho, cortados muito finos e passados rapidamente por azeite. Este ar rústico ia colocado num lado da carne e no outro um macerado de frutos do bosque com açúcar moreno sem refinar, como contraponto ao ácido dos frutos.
Propôs finalmente, já que os pratos principais eram substanciais, que partilhassem um
foie-gras de ganso, recém chegado do Perigord, que aqueciam brevemente numa redução de mosto de vinho branco, que cristalizava em contacto com a chapa e o
foie. Era uma criação do
chef de cuisine e vinha acompanhada de uma salada de rúcula temperada com azeite de arbequinas (zambujeiro) de Borjes Blanques na Catalunha e um vinagre, 25 anos de
solera de Paez Morilla de Jerez. Tudo muito simples, concluiu.
Aceitaram as sugestões e as descrições e olharam-se nos olhos. «Queria, querida Tânia, propor-lhe algo louco: umas férias nas Seichelles num
bungalow de 7 estrelas, em cima do mar, com serviço total e privacidade absoluta. A Tânia poderá tomar banho no Índico, em águas quentes, sem sair de casa. E pode fazê-lo com os seus maravilhosos bikinis ou só com essa gargantilha que tem hoje e que me perturba. Como a viagem é longa viajaremos em primeira classe e assim chegaremos descansados para estas férias tão especiais.»
Quando Tânia se preparava para responder, o
Soumellier aproximou-se, pedindo perdão por interromper, para perguntar que vinho desejariam para os pratos escolhidos. «Se a Tânia está de acordo, creio que um
Champagne iria bem com todos os pratos», disse Rodrigo perante o silencioso acordo da sua amiga. «Decisão avisada e nesse caso proponho um
Piper-Heideseck, Brut, Vintage 00». De acordo, disseram os dois.
Tânia voltou a olhar Rodrigo e disse: «Desculpe Rodrigo, mas tudo isso que sabe das Seichelles, não o aprendeu no catálogo do
Corte Inglês. Esteve lá com alguém?» Rodrigo baixou os olhos e respondeu: «Sim, querida amiga. Já lá estive. Posso garantir-lhe que se trataram de amores fugazes. Tão fugazes e evanescentes como a neblina matinal que se poisa sobre algumas praias no Verão e que logo desaparecem. Hoje e desde há meses o meu peito está vazio e o meu coração triste. Por isso, lhe imploro, Tânia, que encha este peito de alegria e este coração de vida.»
Tânia estendeu a sua mão esquerda e tocou a mão de Rodrigo. Antes de começar a falar reparou como as suas unhas pintadas com um violeta muito escuro de
Clarins faziam um efeito tremendo na mão clara de Rodrigo.
Disse Tânia: «Rodrigo você é tããão humano, voce é tããão poeta, voce é tããão querido, as suas palavras entraram tããão dentro de mim, que a minha resposta só poderá ser um imenso siiiim. Hoje você conseguiu que a minha vida esteja ligada totalmeeente à sua. Vamos onde quiser, queridíssimo amigo.» Seguiu-se um silêncio, em que só os olhos brilhavam.
Chegados à sobremesa, Tânia tomou uma mousse de chocolate mexicano, com 70% de cacau (ou seja: super amargo) acompanhado com um cálice de
Tokaj. Húngaro, evidentemente. Rodrigo só tomou um café do Equador e um balão frio de
whisky de malte,
Macallan 30 anos, sem gelo.
Saíram do restaurante e Rodrigo convidou Tânia a sair da cidade. Passaram a ponte e foram a uma praia onde a areia, nessa época do ano, era dura. O
BMW desceu a arriba e começaram a rodar loucamente na areia e na água. Riam como dois apaixonados. Mais umas voltas e o carro respondia. Quando alguma gota de água do mar os salpicava, riam ainda mais. Uma música vinda não se sabe de onde, acompanhava aquela vertigem. Rodrigo deu a volta ao carro, ficaram em frente do mar. Olharam-se. As suas bocas aproximaram-se e...
*... e eram sete da manhã quando Zé Aparício ouviu o despertador. Tinha dormido mal porque hoje tinha que se apresentar numa empresa, conforme lhe tinham dito no Fundo de Desemprego. Há um ano que não tinha trabalho, mas tinha confiança de que com a sua experiência de eletricista, podia conseguir esse trabalho. Seriam uns 600 ou talvez 700 euros por mês, que com os 550 que ganhava a sua namorada Ermelinda, como caixa num supermercado, dariam para voltar a ter uma esperança numa vida um pouco menos difícil. Cada vez que pensava porque tinha dormido mal achava que era por esta possibilidade de trabalho.
De repente, veio-lhe à cabeça que toda a noite tinha sonhado com os anúncios e as séries americanas da televisão. Lembrava-se dos carros, dos fatos, dos restaurantes, dos passeios na praia, naquelas belezas inventadas para durarem no máximo um minuto. Lembrava-se das mulheres lindas e disponíveis das séries. Irritou-se consigo próprio por não ter percebido que aquela gente não existe. Eram só anúncios. Assim nos enganam.
Mas ele também tinha um sonho: se lhe calhasse o Totobola, ia a um
stand e, assim à maluca, comprava um
Clio ou um
Corsa. Depois convenceria a Ermelinda a pedir quinze dias de férias e a irem, sei lá, a Andorra, onde diziam que tudo era barato, sobretudo a gasolina. Não pouparia em gastos, não iriam para uma pensão, mas para um hotel dos bons, aí de duas ou três estrelas. Sabia que havia muitos portugueses emigrados em Andorra e havia de encontrar alguém que lhe dissesse onde se comia bem e barato.
A caminho da nova hipótese de trabalho, sorriu só para si ao pensar, que se tudo saía bem com a Ermelinda nessa viagem, passaria a chamar-lhe Linda.
Francisco Mota