O clube popular como elemento essencial da dinâmica social

A. Mello de Carvalho

A atitude que, entre nós, predomina consiste na habitual desvalorização do desporto como fenómeno cultural e dinamizador do tecido social, o que influencia a atitude de quem opina sobre a caracterização do clube desportivo e a reconstrução das suas funções. Ao contrário de outras actividades sociais e culturais, pode pensar-se que o desporto, pelo seu carácter espectacular, foge a esta situação.

Trata-se de um erro crasso que só demonstra a visão incorrecta que se possui das funções do próprio desporto (até porque grande parte da actividade desportiva não possui esse carácter espectacular, ou possui-o em baixo grau).

Naturalmente que esta perspectiva envolve e integra por inteiro o próprio clube, ou seja, a organização social responsável por grande parte da prática desportiva. O «grande clube», com a sua equipa de profissionais (falso profissionalismo, pois que ressalvando a minoria das gloriosas estrelas que ganham fortunas, a grande maioria não possui estatuto de uma autêntica profissão) faz parte do «grande circo» da «nova indústria» com todo o seu estendal de escândalos pré-fabricados, de sensacionalismo interesseiro e apaixonadas adesões que chocam com a racionalidade mais elementar. O «pequeno» clube de bairro, ou nascido na pobreza da ruralidade que ainda persiste no País, é olhado com um sentimento de descrédito e autêntico desprezo pela generalidade da classe política e, muito mais ainda, pelo pequeno grupo de intelectuais «fazedores de opinião» que com ela coabitam numa promiscuidade e subserviência que desaguam no aborto do politicamente correcto «pensamento único». A defesa da visão futura de que o associativismo desportivo assumirá novas características, evoluirá no sentido da empresa de serviços, ou tornando-se muito mais «volátil», assume uma enorme gravidade à luz daquilo que se acaba de referir quando se pensa numa sociedade em que a equidade não passa de uma mera ficção cuidadosamente escamoteada por quem detém os «poderes» essenciais (informação, economia, cultura, etc.).

Só o futuro nos dirá se a visão predominará como alguns prevêem e desejam, tomando em consideração o poder que as forças sociais e políticas nele interessadas detêm no presente. Mas isso só significará que a sociedade, no seu conjunto, evoluiu no pior dos sentidos. Nestas circunstâncias o associativismo não poderá desempenhar as suas funções, e o desporto perderá, pelo menos em parte em parte significativa, o valor cultural e formativo que potencialmente encerra.

 

 Conciliar a obrigação com a liberdade

 

O associativismo desportivo, ou seja, o clube desportivo constitui uma parte significativa de todo o associativismo. Para o desporto, ele representa o princípio de autonomia capaz de conciliar a obrigação com a liberdade. É por isso que ele é indispensável para a difusão da prática desportiva entre a generalidade da população.

O clube desportivo popular constitui uma possibilidade de expressão, de afirmação e progresso pessoais e um meio de intervir na própria dinâmica social. De facto, é a estrutura da instituição que permite ao sócio imaginar e pôr em prática o projecto construído por si, e que o ajuda a «construir-se» a si próprio em conjunto com os outros.

A verdadeira natureza do desporto não pode ser encontrada fora do respeito simultâneo da lei (concebida em termos latos), dos outros e de si mesmo. Este quadro só pode encontrar-se completamente dentro da realidade associativa desportiva. Não significa isto que as empresas se coloquem fora da lei. Nada disso. Não podem é responder a outro princípio fundamental que não seja o da obtenção do máximo lucro. E este, por definição, exclui outras finalidades, preocupado como está em elaborar «produtos» capazes de responderem adequadamente aos imperativos de uma procura privilegiada e normalmente condicionada pela moda consumista.

A empresa privada tem, na configuração actual da sociedade em que vivemos, um papel a desempenhar no processo de desenvolvimento das actividades físico-desportivas. Mas, quer se trate da prática individualizada, quer do grupo «serial» (agrupamento de indivíduos sem verdadeiro vínculo interpessoal), estamos perante tipos de prática que não possuem a riqueza nem esgotam a totalidade das potencialidades humanizadoras que o desporto possui quando a sua prática resulta da acção coordenada de um grupo de indivíduos que procura resposta para necessidades a que a simples oferta comercial, ou a actividade individual, não pode fornecer resposta.


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