- Nº 1924 (2010/10/14)

Os lugares tristes

Argumentos

Eram lugares acanhados e propositadamente sombrios para que a penumbra encobrisse os rostos envergonhados que se abeiravam dos balcões velhos. Eram as chamadas «casas de prego», muito em voga nos anos do fascismo de que alguns exprimem hoje inconsoláveis saudades. Ali acorriam, tristonhos, os que já não encontravam quem lhes emprestasse uns escudos de que urgentemente precisavam e, contudo, ainda se apegavam à vaga esperança de não ter de vender as alianças de casamento, o fio de ouro que um dia a mãe lhes dera, o relógio de bolso que o pai usara na algibeira do colete até que caíra à cama para morrer. Subiam então, lentamente, a escada de um prédio antigo e iam «pôr no prego» esses pequeninos tesouros, dizendo de si para si que, com um poucochinho de sorte, dentro de um ou dois meses ali haveriam de voltar para os recuperar. Em certos casos voltavam, embora quase sempre para aí regressarem umas semanas depois. Até que, numa outra vez, já não conseguiam voltar. E as alianças de casamento, o fio dado pela mãe, o relógio herdado do pai, se sumiam na rotina de um leilão. Eram assim as casas de penhores, em regressão a partir dos finais da década de 40 e que reapareceram agora como que triunfantes porque os tempos voltaram a ser-lhes propícios. Esse reaparecimento foi o tema principal do programa «Sociedade Civil» da passada segunda-feira, que também nos falou do boom do comércio do

ouro em peça, moeda ou barras, decorrente da mesma epidemia de empobrecimentos que percorre a sociedade portuguesa. Apresentado como sempre, e sempre bem, pela jornalista Fernanda de Freitas, «Sociedade Civil» convocou para a conversa especialistas de sectores de um modo ou de outro relacionados com os dois assuntos, desde uma dirigente da Deco até a técnicos de gestão financeira e de uma advogada. Mas o depoimento mais forte, presente ainda que só por evocação, foi o drama silencioso vivido pelos que, hoje como ontem, sobem as tais escadas sombrias para deixarem num balcão, na maior parte dos casos para sempre, objectos que ali abandonam com antecipada saudade e muitas vezes com desespero.

 

Um bom negócio

 

Como no programa se disse, o comércio de empréstimos sobre penhores está em Portugal numa fase florescente. E não apenas porque se multiplicou o número de empresas que exploram o ramo, mas também e sobretudo por ter boas condições para ser altamente rendoso: ali se ouviu que a taxa de juros que recaem sobre o empréstimo ascende a 36% ao ano e que sobre o valor dos juros cobrados se acrescenta uma taxa de 1% sobre o valor avaliado e uma comissão de 11% sobre a taxa. Mas a perspectiva de proveitos não se fica por aqui. Como cerca de 30% dos objectos empenhados não são resgatados e acabam vendidos em leilão, e porque a avaliação é sempre cautelosamente feita por um valor muito baixo, é possível e provável que a venda em leilão resulte num acréscimo do lucro já embolsado. Há-de ser por isso que sobre o prestamista recai muitas vezes o labéu de agiota e que a função atrai uma antiga reputação negativa e uma antipatia que até teve um registo de natureza cultural nas páginas de Dostoievsky. E, contudo, é injusto que assim seja, porque essa rejeição de raiz supostamente ética abate-se sobre o pequeno comerciante da área do penhorismo mas poupa o comércio bancário que, pelo menos em parte e naturalmente com outra dimensão, melhores instalações e, digamos assim, outro asseio, em muitos casos não difere no essencial da prática das casas de penhores. Mas esta comparação provavelmente abusiva e demagógica, da qual aliás apressadamente me quero penitenciar, não é de modo nenhum o que de mais importante decorre desta emissão de «Sociedade Civil». O importante, isso sim, é perceber o vínculo existente entre a expansão actual do comércio de penhores e o crescimento do desemprego, a insuficiência dos salários, o custo da habitação e da escolaridade, coisas assim. E, complementarmente, pensar em encontrar as formas de travar o crescimento de uma actividade creditícia sem dúvida legal e até legítima mas que, infelizmente para todos os que nela intervêm, é um pequenino monstro que parecia adormecido mas acordou agora com impressionante robustez. Não é porque as casas de penhores estejam agora instaladas em salas mais amplas e ao cimo de escadas mais claras que deixam de ser lugares tristíssimos. E talvez até a claridade torne mais evidente a tristeza de que são lugar e símbolo.

Correia da Fonseca