O direito recusado
Um dia destes, Arménio Carlos surgiu nos ecrãs dos nossos televisores. Posso mesmo acrescentar que essa aparição ocorreu na passada segunda-feira, no quadro de uma série de reuniões em que também ele participou, e a facilidade desta minha precisão é muito fácil porque, como bem se sabe, o Secretário-geral da CGTP não é dos que aparecem na televisão todos os dias, bem pelo contrário. Abordado pelos jornalistas, Arménio Carlos fez umas declarações breves e, a propósito da assustadora taxa de desemprego já atingida, e creio que do desemprego jovem em particular, referiu-se à necessidade de uma política económica que tenha como objectivo final a consecução de uma situação de pleno emprego, isto é, em que o desemprego tenha sido praticamente eliminado ou reduzido a uma percentagem irrelevante. Sublinho, à cautela, que estas são palavras minhas, não as que ele então proferiu, mas estou certo de que não estou a atraiçoar-lhes o sentido. Ora, esta explícita referência ao pleno emprego confirma que Arménio Carlos não se importa de ferir ouvidos delicados que se desgostam ao ouvir certas coisas, pois é claro que o projecto de uma sociedade com pleno emprego é incompatível com os interesses dos que preferem a permanente existência de um numeroso contingente de desempregados a assegurar que o nível dos salários se mantém simpaticamente baixo. Foi aliás isto que eu aprendi em recuados tempos. Mas a coisa é de tal modo incómoda que, a dada altura, alguns sábios segregaram um outro entendimento do pleno emprego, que passaria a englobar não apenas a utilização da mão-de-obra mas também a plena aplicação integral da maquinaria adequada e de outros factores de produção. Tudo ficava assim mais diluído, é claro. Mas pareceu-me claro que Arménio Carlos falava concretamente do pleno emprego da massa trabalhadora como objectivo final que implicaria a eliminação de um desemprego significativo. Isto é: que na verdade se referia implicitamente a um projecto económico radicalmente diferente do que está em acelerado (e impiedoso) curso de execução com os efeitos terríveis já bem à vista, por consequência a uma sociedade outra e melhor. De onde os desgostos, ou ainda mais provavelmente o horror, que terá suscitado.
Onde se lembra Mestre Gil Vicente
De qualquer modo e para lá de desgostos e horrores, o que importa acentuar é que a preocupação do Secretário-geral da CGTP com uma situação de pleno emprego corresponde de facto à reafirmação de um direito que cabe a todos os cidadãos adultos, o direito ao trabalho. Com direitos, como a mesma CGTP recorda e reivindica. E convirá talvez lembrar que isto do direito ao trabalho para todos os cidadãos não é uma invenção da central sindical nem o foi dos deputados constituintes que fizeram constar esse direito no texto fundamental da República. Acontece que é uma ideia muito mais antiga, e espero que nenhuma alma mais sensível se sinta chocada se aqui fique lembrado que o trabalho como dimensão fundamental da condição humana está nem menos que nas Escrituras, presente aí como ideia divina, pois segundo elas terá sido uma invenção do Criador, com maiúscula inicial como o respeito impõe, que decidiu que o homem trabalhasse e pelo trabalho, um pouco pitorescamente caracterizado pela consequência do suor no rosto, acedesse ao salário, isto é, ao pão que pelo esforço do trabalho ganharia. Por aqui poderão os mais devotos compreender que o trabalho não apenas é um direito como uma coisa literalmente divina, pois pelo menos para essa numerosa e decerto virtuosa gente contra Escrituras não há argumentos. Ora, sendo assim, espanta que possa haver quem se arrepie, em sentido figurado ou mesmo literal, de indignação ou de temor, quando o Secretário-geral da CGTP fala de pleno emprego e recomenda uma sociedade em que ele seja, enfim, conseguido. Complementarmente, espanta também que haja quem recuse esse direito e a sociedade em que ele esteja garantido a todos os seus membros. Gil Vicente escreveu um dia que «a história de Deus tem tais profundezas (…)». Ele lá sabia. Mas, profundezas por profundezas, bem se pode dizer que a história das sociedades capitalistas também as tem.