Procuram uma nova narrativa que possa recauchutar o consenso

O erro de Fukuyama ou o dedo na ferida

Luís Carapinha

Muito menos de 20 anos foi o tempo necessário para que a História se encarregasse de reduzir a pó a profecia do «Fim da História» que armada em tese fez lustro nos circuitos políticos e intelectuais do pensamento dominante. Hoje até abjurada pelo seu celebrado autor, Francis Fukuyama. O ideólogo norte-americano, um dos principais cérebros da sinistra doutrina Reagan, publicou recentemente um artigo que designou «O Futuro da História» (Foreign Affairs, Jan/Fev 2012). Em tempos marcados pela Grande Recessão capitalista e o seu tormentoso horizonte de estagnação e queda, a questão que inquietantemente se coloca a Fukuyama, que em tempo útil se distanciou da chamada corrente neoconservadora de que fora um dos expoentes, é se «a democracia liberal pode sobreviver ao declínio da classe média». De facto longe vão os tempos, no virar dos anos 90 quando o campo socialista entrava em derrocada e a URSS caminhava rapidamente para o seu fim, em que o capitalismo triunfante sob as cândidas vestes da «democracia liberal» se proclamava fórmula final da História, varrendo-se também de uma só cajadada esse espírito maligno que dá pelo nome de luta de classes. Breve transcurso na História (apenas duas décadas) que longe de confirmar o seu fim esplendoroso assistiu antes à ejecção do seu apóstolo errante.

 

Questão menor, mas merecedora de atenção é a da trajectória da sua pirueta. Cavalgando um triunfalismo tão desmedido quão insensato, Fukuyama esteve entre os produtores de ideias do imperialismo que, aproveitando o 11 de Setembro de 2001 nos EUA, ajudaram a dar o mote à invasão do Afeganistão e do Iraque. Seguidos por toda uma corte transnacional de acólitos que, directamente perante as câmaras ou ao computador nas mesas de trabalho, não hesitou em alçar-se em botifarras de campanha… Depois do atoleiro, Fukuyama renega o neoconservadorismo, num percurso típico do mainstream. Bate em Rumsfeld, vira costas a Bush e torna-se, finalmente, eleitor de Obama. Como se nada fosse, a apologia crua do poder hegemónico passa a ser embrulhada no tortuoso mito de um «wilsonionismo realista», segundo o qual os EUA só recorreriam à força militar em último recurso. O cadastro intervencionista do presidente Nobel da Paz em exercício é suficiente para aferir sobre a validade daquele pressuposto. Quanto a Wilson, bastará recordar que foi na sua presidência que em 1918 os EUA enviaram tropas para a Rússia para, como preconizava Churchill, ajudar a afogar no seu próprio berço a revolução soviética bolchevique.

 

O dilema de fundo que preocupa Fukuyama e os interesses de classe que representa tem que ver com o desenvolvimento da crise ideológica do capitalismo e evidente estreitamento da sua base social. O desgaste a um nível crítico da legitimidade e sustentabilidade do poder das classes dominantes faz «regressar» Fukuyama à História. No artigo citado aponta o «aumento massivo da desigualdade» nos EUA ao longo da última geração e a tendência de concentração da riqueza (lembrando que se em 1974 os 1% mais ricos representavam 9% do PIB dos EUA, em 2007 já equivaliam a 23,5%). Sendo óbvio, como reconhece, que a desigualdade continuará a agravar-se nos EUA – e no mundo capitalista. Sintomaticamente, imputa à globalização – e à China – as culpas do processo de polarização da riqueza e do definhar das ditas classes médias (o que indicia muito do que se prepara na escalada de contenção do imperialismo face à China e aos desafios colocados pela sua ascensão).

O novo paradigma dominante é sinónimo da degradação já visível do próprio quadro da democracia burguesa, prenunciando tempos de maior instabilidade e incerteza. Fukuyama (e a social-democracia em busca de rumo) procuram uma nova narrativa que possa recauchutar o consenso e estabilidade do sistema em risco. Qualquer coisa que sirva para esconjurar a perspectiva revolucionária e abater o inevitável caminho da luta persistente contra a exploração capitalista, rumo ao socialismo.

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