A morte e a morte do meu amigo Vila (Mexilhoeira Grande)
Fiquei preocupado quando recebi o telefonema da Dau informando que o Vila queria fazer um almoço na tasca, para os amigos mais chegados. E porquê? Porque dizia que ia morrer e não o queria fazer sem juntar os amigos para um último almoço. Mas está doente? Não, mas diz que algum dia morrerá e não sabe se é dentro de um mês, um ano ou vários anos, mas sobretudo não quer pensar que isso possa acontecer sem os ver aqui todos.
Concluí que este Vila tem uma imaginação enorme, que eu pensava que só utilizava para pintar e cozinhar, mas que agora vejo que também serve para realizar coisas «estrambóticas». Lá fomos no dia aprazado, comemos, cantámos, bebemos e passámos a tarde e um pouco da noite a falar do passado e deste presente malvado que nos impingiram.
Esta coisa da morte tem que se lhe diga e dá muito que pensar. Já o Garcia Marquez, nos «Cem anos de solidão», conta como um dos personagens de Macondo, que tinha morrido há umas semanas, um dia apareceu ao Coronel Aureliano Buendia (se a memória não me engana) e lhe explicou que estar morto era uma chatice, não tinha com quem falar, não bebia um copo com ninguém e sobretudo que todos os dias eram iguais, assim que tinha decidido voltar à vida. O seu amigo esteve de acordo e ele andou pela aldeia, até que decidiu voltar a morrer porque a vida também era uma chatice. Também Jorge Amado segue na mesma linha no conto «A morte e a morte de Quincas Berro D'Água», que se chamava assim desde há anos, porque era pescador e cada vez que chegava a terra ia direito a uma tasca do cais da Baía, agarrava numa garrafa e bebia cachaça até se sentir bem. No entanto, um dia, um mau dia, fez o mesmo e ouviu-se em todo o cais, em toda a Baía e em metade do mar oceano, um grito sobre-humano «áááááguaaaaaaaa!!!!!». O tasqueiro tinha posto por engano uma garrafa de água igual às que tinham cachaça. Aí nasceu o «Quincas Berro D'Água». Pois este pescador, num dia de tormenta, caiu ao mar e morreu. Foi muito chorado nos Cais da Baía, mas o morto achou que aquilo não era forma de morrer. Então voltou à vida e preparou com todos os detalhes a sua morte, como ele achava que devia ser. Levou um tempo naquilo, mas chegou ao fim, declarou «que cada um trate do seu enterro, impossível não há» e morreu definitivamente.
Portanto, sem chegar ao extremo do poeta António Lança, que dizia que «a morte nunca existiu», morrer, morre-se. A questão é saber quem está morto e quem está vivo. Se não digam-me: José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Aquilino Ribeiro, Saramago, Ary dos Santos, Gil Vicente, Álvaro Cunhal, Eça de Queiroz, Fernão Lopes, Lopes-Graça, Giacometti, Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Mário Viegas e tantos e tantos outros, não necessariamente conhecidos, mas que são exemplo de rigor, honestidade, luta e honradez, querem-me dizer, repito, que esta gente está morta? Não pensem nisso nem um segundo. Esta gente está viva e continua a influenciar a vida e o pensamento de milhões de pessoas, porque os grandes nunca morrem.
E pelo contrário, estão vivos gente como o Coelho, os seus ministros, o patrão deles chamado Amorim ou Belmiro, mais os patrões do Belmiro e do Amorim (que os têm, se calhar longe daqui), os que nos mandam a troika, os que nos fazem sofrer? E sobretudo o Cavaco, como «primeira figura» deste país, que não faz nada, que se enriquece com operações bancárias duvidosas, que goza connosco falando das suas dificuldades económicas, que é indigno das funções que desempenha e do sítio onde vive e que nós pagamos, querem-me dizer que esta gente está viva? Não. Todos estão mortos, todos são mortos, que nos enganam porque aparecem na televisão para parecer vivos.
De morrer
O fenómeno biológico da morte não tem nenhum interesse ainda que possa ser doloroso nalguns casos. Todos sabemos que chegará algum dia. O que interessa é a dignidade, a consciência, a capacidade crítica, a inteligência que usamos durante a vida biológica, para saber se estamos vivos ou mortos.
Tinha muita vontade de contar-vos isto. Já contei. O que não contei foi o que comemos no «almoço de defuntos» do Vila. Pois começámos com uma canja de lingueirão com cotovelinhos pequeninos, seguimos com uma abrótea arrepiada e terminámos com um cozido de grãos de milho com arroz, carnes, toucinho e um sabor fantástico. Prato típico do barrocal algarvio, entre o mar e a montanha.
Mas queria hoje falar-vos da abrótea. Este peixe barato, de carne mole e parente da pescada, se se cozinha sem arrepiar, não tem sabor, a carne desfaz-se e tudo é uma papa sem graça. Então como se faz? Passo a palavra ao Vila que escreve «Depois de amanhado e lavado, salga-se o peixe, esfregando com sal no sentido do rabo para a cabeça. A esta operação dá-se o nome de «arrepiar». Ata-se o peixe com um fio e pendura-se de cabeça para baixo de um dia para o outro. Parte-se o peixe e demolha-se durante cinco minutos. Coze-se com água a ferver, um quarto de cebola e salsa. Num tacho aloura-se azeite e cebola e adiciona-se a água onde cozeu o peixe. A quantidade deve ser duas vezes e meia superior ao volume do arroz. Junta-se um ramo de salsa e rectifica-se de sal. Serve-se o peixe com o arroz com uma quantidade generosa de azeite e limão» (do livro «Coisas da terra e do mar», do Vila). O que comemos neste almoço era talvez do melhor que já comi na tasca. Estava de morrer...
Para concluir diria que antes e depois da «cerimónia fúnebre» o pré-morto estava vivo e bem vivo. Assim seguirá, sem dúvida. E sem dúvidas.