- Nº 2027 (2012/10/4)

Formigas e cigarras

Argumentos

A estória é conhecida e tem a sua razão de ser. A dita formiga trabalhava imenso e a cigarra não fazia puto, mas divertia-se à brava, cantava que nem uma desalmada, estava-se marimbando para os esforços físicos da pequena obreira e, vai daí, La Fontaine achou por bem exaltar a trabalhadeira e menosprezar a cantigueira, decidindo liminarmente a predominância do trabalho sobre o folgar. Tudo estaria bem, não fora ficar assim decidido pelo fabulista que há que trabalhar sem gozo.

O busílis da questão reside numa palavra simples: felicidade. Dirão, se levarem à letra La Fontaine, que a felicidade, entre aspas por inacessível, reside na consciência tranquila (e no corpo gasto e não atreito a compensações) de quem se esmiúfra a trabuquir sem ter mais horizontes do que o sustento dos invernos garantido pelo trabalho das primaveras. E por aqui se fica a dissertação da tese, há que trabalhar para sobreviver, não há folguedos para ninguém.

Faltou ao homem das fábulas uma terceira personagem, que seria, se dela se tivesse lembrado, uma formiga de asas, bicho comprovadamente existente e que, labutando, tem tempo para voar, o que, na análise comportamental dos insectos, quer dizer, cigarramente falando, cantar.

Vem isto a propósito da frase abundantemente propagada de um senhor ministro, co-autor de um programa de comportamentos de vida impostos – na verdadeira acepção da palavra – que obriga formigas com sonhos de, pelos menos, serem formigas-cigarras de vez em quando, a serem exclusivamente formigas, daquelas de encher celeiros que lhes garantem um mínimo de subsistência a elas e um superavit aos formigões que as controlam.

Que La Fontaine tenha pretendido fazer um apelo ao trabalho, por contraposição a quem não trabalha e só folga, sendo que há-de sempre haver alguém que pague os folguedos de quem apenas vive de lazeres, dá-se aqui de barato, pesem embora algumas dúvidas que o correr dos tempos veio a confirmar. Mas que um ministro português, em 2012, tempo de crise e da ultra-austeridade que esmaga quem, por trabalhar, é formiga, sem direito a sonhos de almejar ser, por momentos que seja, cigarra, é, no mínimo, insultuoso.

Cantou Zeca Afonso, para seu bem cigarra-formigueira, «a formiga no carreiro vai em sentido contrário». Porém, os ouvidos do senhor ministro e seus pares nunca hão-de entender que só é seu o canto do cisne. E que, nosso, há-de ser sempre, por mais que nos imponham decretos de servidão contrária às melodias que a vida tem para nos dar, o canto da formiga quando chega a altura de reivindicar ser a cigarra a quem tem direito.

Nuno Gomes dos Santos