Do lado certo da História
O 1.º de Maio é uma data especial na luta dos trabalhadores pela sua emancipação e, por maioria de razão, também o é para os comunistas. Em Portugal dos anos do fascismo e do período revolucionário, foi nesta data que tiveram lugar algumas das mais importantes jornadas de luta da classe operária e dos trabalhadores pela liberdade, a democracia e o socialismo. Nesta edição lembramos três dessas jornadas – 1962, 1974 e 1975 – e o que delas disse e escreveu Álvaro Cunhal, principal obreiro do Partido Comunista Português e construtor destacado do movimento sindical unitário reunido em torno da CGTP-IN.
O 1.º de Maio é assinalado em todo o mundo desde 1890, a partir da proclamação pela II Internacional desta data como Dia Internacional do Trabalhador, em homenagem aos chamados «mártires de Chicago», assassinados quatro anos antes pelas autoridades dos Estados Unidos da América, na decorrência de uma poderosa acção de luta em defesa da jornada de trabalho de oito horas.
Portugal não foi excepção e o 1.º de Maio foi celebrado logo nesse ano através de piqueniques de confraternização, discursos e romagens aos cemitérios em homenagem aos operários e activistas caídos na luta. Apesar da sua limitada expressão de massas, estas comemorações constituíram um importante elemento de construção da consciência de classe dos trabalhadores portugueses. Em 1919, já durante a República, realizam-se grandes jornadas de luta por ocasião do 1.º de Maio, sobretudo em torno da exigência do horário de oito horas, consagrado em lei pouco tempo depois.
Nos anos da ditadura, que esmagou a organização operária e ilegalizou os partidos políticos, os trabalhadores não deixam de assinalar o seu dia, quer de formas mais ou menos simbólicas quer por intermédio de greves e acções de massas. Na decorrência da reorganização do PCP de 1929 e da criação, no ano seguinte, da Comissão Inter-Sindical (CIS), realizou-se um grande 1.º de Maio em 1931, que teve como principal bandeira a luta contra a ditadura.
A partir da reorganização do PCP de 1940-41, que transformou o PCP num grande partido nacional com influência determinante na classe operária, o movimento operário desenvolve-se e o 1.º de Maio não deixa de ser assinalado, de uma forma ou de outra, mesmo sob a mais violenta repressão. Mas seria a partir de 1962 que o Dia Internacional do Trabalhador substitui definitivamente o 5 de Outubro como o principal dia de luta contra o fascismo, acompanhando a afirmação da classe operária e do seu Partido como forças determinantes no derrube da ditadura e na construção do Portugal democrático, a caminho do socialismo.
1962
A maior jornada contra o fascismo
O 1.º de Maio de 1962 foi assinalado em todo o País em poderosas acções de massas convocadas pelo Partido. Sobre estas movimentações escreveu Álvaro Cunhal no «Rumo à Vitória» que, juntamente com as manifestações de dia 8 do mesmo mês, em Lisboa, e as lutas dos operários agrícolas do Sul do País, constituíram «uma das maiores senão a maior jornada de luta antifascista desde o advento da ditadura e a maior vitória de sempre do Partido Comunista na mobilização das massas populares para uma jornada política».
Um pungente relato da manifestação de Lisboa, que envolveu 100 mil manifestantes, surge no Avante! da primeira quinzena de Maio, onde se lê que às sete horas da tarde desse dia, a Baixa lisboeta estava «ocupada por mais de 100 mil manifestantes que começaram a dar vivas à liberdade e a cantar em coro impressionante o Hino Nacional, deslocando-se com dísticos para o Terreiro do Paço». A repressão não se faria esperar e em breve as «companhias móveis da polícia, os esquadrões de cavalaria da GNR e as brigadas da PIDE» lançavam-se sobre o povo para o fazer dispersar, ao mesmo tempo que procuravam capturar alguns manifestantes.
À violência fascista, o povo opôs uma «enérgica resistência», conduzida por grupos de operários e estudantes. A luta foi dura e prolongou-se por várias horas, até perto da meia-noite: o centro da cidade, «onde todo o trânsito fora cortado pela polícia, foi teatro de autênticas batalhas de rua que se tornaram mais duras sobretudo na Madalena, no Carmo, no Rossio e Martim Moniz. Com a selvajaria habitual, as companhias da polícia e os esquadrões da Guarda espancavam indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, lançavam granadas e jactos de água suja sobre a multidão que recuava para se reagrupar de novo, gritando a plenos pulmões “Morra Salazar! Abaixo o Fascismo! Assassinos!”». Nunca cedendo, os manifestantes respondiam que «o que podiam arrancar das ruas», como pedras e postes de sinalização. Houve dezenas de feridos e o jovem operário comunista Estêvão Giro acabaria por morrer varado por uma rajada de metralhadora.
Coragem e organização
A heróica jornada de 1962 não se confinou a Lisboa. No Porto, a manifestação convocada pelo PCP e pelas Juntas Patrióticas, reuniu dezenas de milhares de pessoas, sobretudo trabalhadores. Também aí houve confrontos com a polícia, que se prolongaram pela noite fora. Houve dezenas de feridos e presos mas, como salienta o Avante!, a «combatividade do povo fez prolongar por muitas horas as manifestações pela liberdade, contra Salazar». Noutras localidades, como Almada, Barreiro, Baixa da Banheira, Couço, Ervidel, Santiago do Cacém, houve manifestações e embates com a repressão. Em Alpiarça, Alcáçovas, Aldeia Nova, Ervidel, Escoural, Grândola, Montemor-o-Novo, Pias, Pero Pinheiro ou Vila Moreira o dia ficou assinalado por greves, enquanto que nos campos do Alentejo e do Baixo Ribatejo marcaria o arranque da luta pela jornada de trabalho de oito horas, que sairia vitoriosa.
Por trás de tamanha movimentação de massas estava um intenso trabalho preparatório, marcado por uma ampla organização e agitação. Álvaro Cunhal, no «Rumo à Vitória», salienta a acção da Rádio Portugal Livre, que insistira durante mais de um mês na preparação e realização da jornada, e na edição de distribuição de centenas de milhares de manifestos, selos, cartazes e postais. Mas a causa funda do sucesso da jornada residiu nas orientações traçadas pelo PCP após a fuga de Peniche, corrigindo-se o desvio de direita e dando-se prioridade ao desenvolvimento da luta de massas e à sua orientação numa perspectiva revolucionária.
1974
Confirmar Abril
O 1.º de Maio de 1974 foi seguramente o maior alguma vez comemorado em Portugal: só em Lisboa, mais de um milhão de pessoas participou na manifestação; no Porto, como noutras cidades, o dia ficou marcado por impressionantes movimentações de massas.
Chegado a Portugal na véspera, vindo de Paris, Álvaro Cunhal intervém no comício em Lisboa, onde afirmaria que «esta imensa manifestação, pela possibilidade da sua realização e por si mesma, é a afirmação irrefutável de que a classe operária, o povo trabalhador, todos os democratas, os militares, a Nação portuguesa inteira, estão firmemente decididos a levar até ao cabo a liquidação do fascismo e dos seus restos, a consolidar e alargar as liberdades, em pôr fim à guerra, em instaurar em Portugal um regime democrático. São estes os objectivos fundamentais da hora presente. Eles podem e devem ser alcançados. Se o quisermos, sê-lo-ão».
Na mesma ocasião, o então Secretário-geral do Partido adiantava ainda as duas condições essenciais e imediatas para assegurar a vitória definitiva da Revolução: a «unidade e a rápida ampliação e reforço de organização da classe operária, das massas populares, das forças democráticas» e «a aliança do povo com as Forças Armadas». Os meses que se seguiram confirmariam o acerto destas teses.
As grandes manifestações do Dia Internacional do Trabalhador de 1974, ocorridas em todo o País, realizaram-se apenas seis dias depois do derrube do governo fascista de Marcelo Caetano pelos militares do MFA, secundados pelo povo, a 25 de Abril. Entre essas duas datas, a PIDE e outras organizações fascistas tinham sido suprimidas e os presos políticos libertados. O PCP aparecera entretanto à luz do dia, não esperando que a legalização lhe fosse oferecida, antes impondo-a como um facto consumado.
Aliás, num encontro entre uma delegação do PCP (composta por Octávio Pato, Jaime Serra e Joaquim Gomes) com o presidente Spínola, no final de Abril, este tentara impedir a legalização dos partidos políticos e a publicação do Avante! com a foice e o martelo. No mesmo encontro, o general frisou, em claro tom de ameaça, que a manifestação do 1.º de Maio revelaria a verdadeira influência do PCP entre os trabalhadores e, em última análise, se o Partido merecia ou não a legalidade que reclamava. A resposta dos trabalhadores – e dos comunistas – foi peremptória.
O 1.º de Maio de 1974 há muito que vinha a ser preparado, pela Intersindical (criada em 1970) e pelo Partido. Em Março, o Avante! publicava na primeira página um excerto do comunicado da Comissão Executiva do Comité Central: «Que cada um dê a sua contribuição para fazer do 1.º de Maio de 1974 uma grande jornada antifascista de unidade e de acção! Façamos do 1.º de Maio uma jornada de luta por melhores salários e melhores condições de trabalho, pela liberdade sindical, pelo direito à greve, contra a carestia de vida! Façamos do 1.º de Maio também uma jornada de luta pelas liberdades democráticas, contra as guerras coloniais, pela independência nacional e pela Paz!»
1975
Rumo ao socialismo
Em Maio de 1975, a Revolução ultrapassara já três tentativas de golpe (Palma Carlos, 28 de Setembro e 11 de Março) e as suas mais profundas e significativas conquistas estavam já em marcha acelerada: as primeiras nacionalizações tinham sido proclamadas meses antes, a Reforma Agrária era já uma realidade em milhares de hectares na zona do latifúndio, em muitas empresas os trabalhadores assumiam a gestão. O socialismo português tomava forma.
No Dia do Trabalhador, uma multidão invade as ruas do País. Como afirma o Avante! do dia seguinte, este foi um «1.º de Maio digno da Revolução Portuguesa. Um 1.º de Maio cujo eco deu a volta ao Mundo, chegou a todos os países cujos trabalhadores nos enviaram o abraço fraterno da solidariedade proletária. Uma festa como Portugal não vira outra no género». Se Maio do ano anterior fora «da esperança, da alegria pela liberdade reconquistada», o de 1975 foi o «da confiança, da certeza na vitória final».
Na tribuna do Estádio 1.º de Maio, intervêm Antero Martins, da Intersindical, o Presidente da República Costa Gomes e o primeiro-ministro Vasco Gonçalves, «recebido com uma das maiores ovações da tarde», noticia o Avante!. O «Companheiro Vasco», como ficaria conhecido nessa época, destacou então a derrota dos sucessivos golpes da reacção e apelou à vitória na batalha da produção, da qual dependia o «futuro da nossa revolução». Nessa batalha, o papel principal cabia aos trabalhadores, afirmou, acrescentando que o seu esforço reverteria já não em favor das classes privilegiadas mas de todo o povo.
Outra imensa ovação recebeu-a Álvaro Cunhal, presente na tribuna. Foi a «primeira e única vez em toda a tarde em que os comunistas, na festa proletária, aclamam o seu partido (…) Mas logo a palavra de ordem permanente, a palavra do dia, a palavra que traduz a força e a dinâmica revolucionárias cobre, nas vozes dos comunistas e de todo o povo, o estádio: “O povo está com o MFA!»
O 1.º de Maio de 1975 ficaria ainda marcado pela provocação do PS, que iniciaria ali o seu afastamento do IV governo provisório, que abandonaria meses depois. Como salienta Álvaro Cunhal em «A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril», Mário Soares escolheu o 1.º de Maio para iniciar as «provocações de grande espectáculo, que culminariam na ruptura e saída do governo. Recusou-se a participar na manifestação do 1.º de Maio. Recusou-se a aceitar que, além do movimento sindical, falasse no comício o primeiro-ministro do governo ao qual Soares pertencia. O desenrolar da operação mostrou que projectava, realizando uma contra-manifestação e provocando desordens no próprio estádio, chegar à tribuna e ali mesmo dizer o que já andava dizendo. Isto é: tomar a palavra, acusar o primeiro-ministro e o PCP, exigir a demissão de Vasco Gonçalves e a saída dos comunistas do governo». A provocação falhou – e a ruptura do PS com a Revolução e as suas conquistas ficou clara a partir desse momento.