Data, projecto e futuro

Correia da Fonseca

Foi no passado sábado, dia das grandes manifestações convocadas pela CGTP com travessia de duas grandes pontes, uma no Porto, outra em Lisboa. Para minha surpresa, julguei verificar que o conjunto de ambas as manifestações estava a ser objecto de cobertura televisiva bem maior do que o habitual, pelo menos em qualquer dos canais especialmente votados a tarefas informativas, a SIC Notícias, a TVI24 e a RTP Informação. E no estúdio de uma dessas estações, não importa muito qual, além da jornalista encarregada de coordenar o trabalho dos repórteres destacados para o exterior estava um sujeito parece que também jornalista mas ali, pelos vistos, mais na condição de comentador convidado. Chegavam as imagens das centenas de autocarros que atravessavam a Ponte 25 de Abril, dos muitos milhares que os esperavam em Alcântara, dos outros que já se haviam concentrado na Avenida dos Aliados, e de todos eles se elevava o chamamento por Abril, quer nas vozes dos manifestantes quer nas inscrições em panos e outros letreiros. «Viva o 25 de Abril!», «25 de Abril Sempre!», outras fórmulas semelhantes ou equiparáveis, eram uma espécie de seiva vocabular que circulava não apenas nos lugares das concentrações mas também, adivinhava-se, por todo o País. Na verdade, aquele não era apenas o povo português mas também, verdadeiramente, o povo de Abril. Até que, pelos vistos não mais podendo sofrer em silêncio aquela tão fervorosa expressão de fidelidade ao 25 de Abril, o sujeito a quem havia sido distribuída a função de comentador em estúdio, jornalista talvez mas em rigor não naquela circunstância, decidiu abandonar a passividade e passar a esclarecer os indefesos telespectadores. Explicou ele, generoso, que 25 de Abril é apenas uma data do passado e nada mais, pelo que não fazia sentido estar a aclamá-la quase quarenta anos depois. Da sua partilha de sabedoria depreendia-se que o presente é outra e diferente coisa, que o futuro ainda mais diferente será, e que o saudosismo por Abril é uma espécie de doença que ataca os mais velhos e pode eventualmente contagiar alguns novos supostamente raros.

Como estrelas polares

Estava errado, porém, o senhor comentador talvez jornalista, talvez sentinela para ali destacada a fim de se contrapor a eventuais excessos verbais reportados do exterior: o 25 de Abril não é apenas uma data, é um projecto político que visa uma profunda transformação social, e por estas breves palavras já se percebe que a sua redução ao estatuto de efeméride passadista é um caso de miopia mental, se não de coisa pior. É certo que esse projecto arrancou à superfície das coisas há já quase quarenta anos, o que não é pouco, mas talvez o senhor comentador já tenha ouvido dizer não apenas que Roma e Pavia não se fizeram num dia mas também, e sobretudo, que um projecto de radical transformação social demora muitos anos a tornar-se vitorioso, que sofre eclipses e recuos, que por vezes parece definitivamente estagnado e contudo «eppur se muove», como dizia o outro. Se o senhor comentador acredita, por exemplo, que os agora tão louvados Direitos Humanos saíram direitinhos e impressos em bom papel dos portões arrombados da Bastilha a 14 de Julho de 89, saiba que está redondamente enganado: foram precisos anos e anos, décadas e décadas, de lutas ásperas, de fluxos e refluxos, para que o respeito por eles fizesse caminho pelo mundo fora, pois estas coisas demoram. E, contudo, o 14 de Julho, que não é apenas uma data do passado, continua a ser invocado e aclamado. Como o 7 de Novembro. Porque, espero que perceba, há datas que não são apenas algarismos inscritos no calendário: são programas para o futuro, são estrelas polares, são bandeiras de luta. Talvez o senhor comentador tenha visto uma quase seara de bandeiras levantadas acima das cabeças dos manifestantes em alguns sectores daquela massa humana. Pois a evocação de Abril era a versão sonora dessas bandeiras. E com elas desfilava. Não em regresso ao passado: em direcção a um futuro que pode ser demorado mas acabará por chegar porque é o povo que o chama.




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