Num tempo de desnorte cultural,
sobretudo no Teatro

Relembremos Bernardo Santareno

Domingos Lobo

Já nos livros de poesia, Morte na Raiz, de 1954 e Romances do Mar, de 1955, nomeadamente nos romances aí incluídos, encontramos alguns dos temas que irão estruturar grande parte do teatro de Bernardo Santareno: a solidão, a morte, o medo, a angústia, as paixões trágicas, o amor não correspondido, as injustiças, o fatalismo e a religiosidade.

Embora o seu teatro se afaste, na sua iniciação temporal (A Promessa e A Excomungada, são, respectivamente, de 1957 e 1959), do período mais fecundo do neo-realismo, encontramos ainda na sua escrita algumas linhas de concordância com o movimento literário mais importante do nosso século XX: uma subliminar denúncia da situação social (A Promessa, O Duelo, O Lugre); a caracterização das personagens e a sua configuração no tecido social (O Pecado de João Agonia, O Lugre, O Crime de Aldeia Velha); uma linguagem alicerçada na prosódia popular, num lirismo de raiz telúrica e os referentes clássicos (António Marinheiro, O Lugre, O Pecado de João Agonia, O Duelo, O Crime de Aldeia Velha); a religiosidade elementar e as crenças tolhedoras, de aceitação, de sujeição a um destino, fado, presságio, crenças populares impeditivas de revolta (Anunciação, O Duelo, António Marinheiro, O Crime de Aldeia Velha); mas, paradoxalmente, surge na escrita de Santareno (como acontece em Alves Redol, Manuel da Fonseca e José Cardoso Pires – e mesmo em Torga) um corpo textual que introduz no drama uma visão histórica, social e dialéctica, épica e de claro sentido marxista (O Judeu, A Traição do Padre Martinho, Português, Escritor, 45 anos de Idade, Os Anjos e o Sangue) e, principalmente, no seu derradeiro texto O Punho, em que a sua opção social e política melhor se expressa, dado que livre das grilhetas censórias.

Outro dos temas que aproximam Santareno dos seus companheiros neo-realistas, sobretudo de Redol, vamos encontrá-lo na peça O Duelo, no confronto entre o campino e os senhores da terra, impregnado aqui com a componente erótica, cara a Santareno, e o trágico das paixões que Redol igualmente transporta para o seu Barranco de Cegos.

Detectamos igualmente em Santareno, como de resto em grande parte da literatura portuguesa dos anos 1940/50, influências do neo-realismo norte-americano, nomeadamente de John Steinbeck, da peça Ratos e Homens, e do romance Vinhas da Ira, este também influenciando Alves Redol no seu Vindima de Sangue, último título do Ciclo Port Wine; e Arthur Miller, com Morte de Um Caixeiro Viajante e As Bruxas de Salém, cujos contornos cromáticos, ambientais, linguísticos e metafóricos descortinamos na peça de Santareno O Crime de Aldeia Velha, embora me pareça esta última mais conseguida, em termos de construção teatral, psicológica e envolvente do que o texto do autor norte-americano.

Bernardo Santareno é, inicialmente, muito influenciado – na linguagem, nos temas, na estrutura dramática, no subjacente erótico –, pelo teatro de Federico García Lorca. De resto, poetas da 1ª. fase neo-realista, como Armindo Rodrigues e Manuel da Fonseca, foram também influenciados pela imagética dos espaços, pelas componentes populares e pelo ritmo melódico e avassalador do verbo e do universo lorquianos.

Os elementos do imaginário poético, o misticismo, o sentido ritualista, de presságio e transcendência, as forças ocultas, as premonições, o fascínio pelo mistério da nossa condição, as crenças ancestrais, as paixões redutoras e trágicas, o sangue como elemento simbólico do drama, um preclaro sentido dos elementos cénicos e mitológicos como componentes da acção, herdados da tragédia grega (trágico que o autor por vezes subverte como acontece em António Marinheiro: Amália nega-se ao suicídio, ilidindo assim a consumação da tragédia) e um gongorismo barroco elementar, aproximam o teatro de Santareno de peças como A Casa de Bernarda Alba, Yerma ou Bodas de Sangue, ou ainda, num sentido mais amplo do discurso político, na sua subliminar metáfora, de autores como Alfonso Sastre (de resto quase contemporâneo de Santareno), em peças como A Mordaça ou Guilherme Tell Tem os Olhos Tristes.

O tema da homossexualidade, que Redol também aborda no romance O Muro Branco, tem uma forte componente de análise social e psicológica (e de revolta contra os preconceitos morais, que Santareno, ao contrário de Redol, corajosamente denuncia e combate) nas peças: O Pecado de João Agonia, A Confissão e, em esboço inexplícito, em António Marinheiro. Santareno foi o primeiro dramaturgo português a trazer para o texto dramático, de forma corajosa, séria e socialmente relevante, um tema que foi sempre fracturante, ou tratado ao nível do anedotário, tanto no teatro como na ficção portuguesa. Nesta corajosa acepção, aproxima-se do poeta maldito António Botto, o primeiro entre nós a escrever poemas de temática explicitamente homossexual e a sofrer as consequências desse acto.

A universalidade do teatro de Bernardo Santareno, o seu mais nítido contacto com os grandes dramaturgos do século XX, de Lorca a Brecht, de Fassbinder a Sastre, de Tennessee Williams, expressa-se no desejo, no erotismo dos corpos e da sedução, encarado por Santareno, Fassbinder, Lorca, Tennessee Williams como uma maldição, motivo e origem de todas as perseguições, inquisições e morte (e loucura, como em Williams). Neste particular, o desejo serve ao autor de O Lugre como metáfora sobre a ausência de liberdade, a opressão e a intolerância – tal como o fez na abordagem da sexualidade. É neste afrontamento criptográfico que a escrita de Santareno se afirmou contra os códigos vigentes, contra a censura e pôde, subrepticiamente inscrever no seu teatro um amplo sentido libertário, de justiça e de dignidade do humano.

O teatro de Santareno pela sua estrutura, do aristotélico inicial, ao épico brechtiano da segunda fase (convergindo aqui com autores como José Cardoso Pires e Luís de Sttau Monteiro), ou ao popular revisteiro e o panfletário da última fase; pela linguagem, a um tempo lírica e telúrica, excessiva nas suas reverberações semânticas; pela universalidade e singularidade dos temas que aborda (a solidão, os medos, o místico, o desejo, a morte, o erótico), tornam a sua escrita, o seu teatro, não apenas de ressonâncias ibéricas ou limitado a um universo de cultura latina ou mediterrânea, mas de clara expressão universalista.

Só que os nossos teatros nacionais, os nossos mais responsáveis encenadores, permanecem alheios a esta singularidade, a este verbo rasante, emocionado e exaltante, a este imaginário que desce aos abismos das nossas mais extensas perplexidades, e preferem importar sub-produtos anódinos, detergentes, sem estrutura ficcional, sem identidade – e, com a pacóvia, provinciana sobranceria a instalar-se determinante, esse subtil holocausto dos imaginários indígenas, perde o teatro, perde a cultura portuguesa, perdemos nós.

Nota: Se fisicamente entre nós, Bernardo Santareno completaria neste Novembro, 93 anos.




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