- Nº 2102 (2014/03/14)
Comentário

Do prefácio e do resto

Europa

1. Cavaco abriu o livro. No passado fim-de-semana, o jornal do regime deu à estampa, em pré-publicação, excertos do mais recente livro do inquilino do Palácio de Belém (a ostensiva e reiterada violação das suas obrigações não levou, ainda, lamentavelmente, ao que seria uma mais que justa acção de despejo...).

Significativamente intitulado «o período pós-troika», o escrito agora conhecido tem méritos indiscutíveis.

Convém antes de mais esclarecer que, pese embora o alarido mediático, nada do que é adiantado por Cavaco neste prefácio é propriamente novo. Por diversas vezes, o autor expendeu os argumentos agora alinhados em livro. Por entre pungentes apelos ao consenso, sentidas exortações à «união nacional» da troika caseira, por mais do que uma vez Cavaco disse mais ou menos o que agora repete. Resumidamente: atenção que PS, PSD e CDS apoiaram e aprovaram um tratado (o Tratado Orçamental) e aprovaram legislação europeia (os chamados six-pack e two-pack, que compõem o pacote da Governação Económica) que obrigará um futuro governo, seja ele do PSD seja do PS (com ou sem o CDS), a seguir as mesmas políticas que este está a seguir. E a fazê-lo por muitos anos.

No fundo, Cavaco tem dito, à sua maneira, o que Merkel afirmou, de forma lapidar, quando justificou a necessidade do Tratado Orçamental, dizendo que precisávamos na Europa de algo que garantisse que «mudando os governos, não mude a política».

É essencialmente este o mérito do escrito de Cavaco: de uma penada, deita por terra as ilusões semeadas a respeito do fim do período de vigência formal do programa da troika. Em poucas linhas, arrasa com a propaganda em torno da alegada recuperação da soberania no momento em que o relógio que Portas pôs na sede do CDS chegar a zeros (ai se o ridículo matasse...). E deixa claro: com PS, PSD e CDS, juntos (nas diversas combinações possíveis) ou sozinhos, não haverá nem recuperação da soberania, nem mudança de política. Claro que Cavaco se volta a assumir como cúmplice e patrocinador activo do caminho seguido. Mais, projecta-o já, pelo menos, até 2035. Assim denotando, na prática, e mesmo explicitando, com algum detalhe, o conteúdo e implicações dos instrumentos a que PS, PSD e CDS quiseram amarrar o País. Sobretudo, evidenciando o grau de violência neles implícito.

Senão veja-se, avisa Cavaco: sendo o valor da dívida pública em 2014 superior a 126 por cento do PIB, mesmo admitindo valores de crescimento do PIB que há muito o País não conhece, para se poder atingir daqui por 20 anos as metas impostas pela União Europeia, levando a dívida pública até ao patamar dos 60 por cento do PIB, seria necessário que o País registasse, em média, um saldo orçamental anual primário (o que se obtém descontados os juros) de cerca de três por cento do PIB. Agora, tenha-se em conta a violência do Orçamento do Estado para 2014, tenha-se em conta que este ano o tal saldo primário, segundo as previsões oficiais, não andará acima dos 0,3 por cento do PIB, e imagine-se o futuro do País, o que seria a vida dos trabalhadores e do povo, nas próximas décadas, se não se puser fim à política de submissão nacional em curso...

 

2. Na mesma edição em que divulga em primeira mão o prefácio de Cavaco, o órgão oficial do regime titula numa pequenina notícia de última página: «Goldman prefere dívida lusa». Lendo a notícia, percebe-se que o banco que mais governantes (e governadores) tem dado à União Europeia «considera que as obrigações dos países da periferia da moeda única vão manter um desempenho superior aos títulos de dívida dos estados do núcleo do euro. Mais ainda, o Goldman Sachs prefere as obrigações portuguesas em relação às irlandesas». Um excelente negócio, portanto. Nada que não soubéssemos já. Mas que o Goldman Sachs vem agora lembrar, em informação actualizada, aos «mercados» aos quais, Cavaco insiste, há que dar sinais positivos. E haverá sinal mais positivo do que este? Como num balancete, de um lado os sinais positivos, do outro fica o negativo: menos sete mil milhões de euros de serviço de dívida, extorquidos ao País, aos trabalhadores e ao povo, em 2014.

É só até 2035, garante Cavaco...


João Ferreira