O imponderável

Henrique Custódio

Hoje, se atravessamos as pontes de Lisboa deparamos com esquálidas horas de ponta, na cidade vêem-se casas de comércio entaipadas ao correr das ruas, nas avenidas espalham-se os mendigos catando a miséria, há cafés e restaurantes às moscas ou tremeluzindo na agitação passageira de magras clientelas, os antocarros, o metropolitano, os eléctricos, os barcos ou os comboios circulam abocanhados de largas fatias nas multidões que os frequentavam há três anos. O mesmo se passa no Porto e, nas zonas do interior, de Norte a Sul, chegam cada vez mais desgarradas gentes tinindo miséria e lançando a desconfiança, quando não o pânico, nos também esmifrados cidadãos da província, enquanto os escombros de sucessivas falências proliferam pelas serventias empresariais do País.

No fascismo, dizia-se que «trabalhar no Estado dá pouco mas é seguro», pelo que todos procuravam lugares nos «correios» ou na «electricidade», nos «telefones» ou nas «águas», nas «câmaras» ou nas múltiplas «repartições» que proliferavam Estado e País fora. «Cá fora», no privado, o emprego só era relativamente firme nos bancos, seguros, tabaqueiras ou nas fábricas e fabriquetas que proliferavam pelo território, fosse nos altos-fornos do Seixal, nos estaleiros da Lisnave ou nas fabricações de cerâmica junto a veios de barro, a par de oficinas de automóveis ou bicicletas, de «empregados de balcão e contabilidade» em lojas, «magazines» e armazéns de alguma dimensão.

Era esta a «apagada e vil tristeza» do salazarismo.

Pois em apenas três anos – usando ditatorialmente os poderes democráticos que os elegeram e com o patrocínio do Presidente Cavaco – a coligação Passos/Portas conseguiu ignominiar a relação de confiança «cidadão-Estado», que nem o fascismo desrespeitou, lançando o funcionalismo público na instabilidade profissional e de carreira, na insegurança no emprego e na violação do contrato social entre cidadão e Estado que existe em todos os países civilizados, consumada na quebra abrupta de salários dos trabalhadores no activo, na desregulamentação das carreiras e nos cortes e taxas sobre as pensões, para as quais os funcionários descontaram uma vida inteira de trabalho. O «privado» apanhou a boleia e porfia por consolidar o trabalho precário e o ordenado mínimo.

Este Governo violou as leis constitucionais do regime democrático e até as que vigoravam no fascismo, procura desregulamentar o CT ao extremo de «igualar» as indemnizações aos despedimentos com e sem justa causa e já afirma abertamente enormidades como «o emprego para a vida acabou», «o natural é mudar-se de emprego e até de profissões», «temos de empobrecer» e etc.

Passos Coelho parece ter por modelo a organização social das roças coloniais e, para já, conseguiu transformar o País num lugar imponderável.

A única realidade não imponderável é a queda e a expulsão do seu desgoverno.




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