Não ao branqueamento do fascismo

José Pedro Soares

Não podia nem pode passar despercebido. Desta vez o episódio, já de muitos conhecido, tem lugar na «Casa da Democracia», em espaço nobre da Assembleia da República.

Tudo parecia normal se não fossem os deputados do PCP e de outras formações de esquerda a estarem atentos e a questionar, não só da oportunidade mas do próprio conteúdo da exposição de bustos dos presidentes da República ali patente, por decisão e insistência do PS, PSD e CDS, onde, a par dos presidentes do período democrático, figuram, lado a lado e ao mesmo nível, os responsáveis do fascismo, que ocuparam ilegitimamente esse lugar.

Bustos de presidentes, que presidentes? Esta é também uma forma de branqueamento do fascismo, como afirmou no Parlamento João Oliveira. Colocar, lado a lado, sem enquadramento nem explicação do que foi o fascismo e as suas brutais consequências para os trabalhadores e para o povo português, figuras da democracia e do fascismo é, no mínimo, uma forma de desculpabilização dos responsáveis pelo grande e prolongado sofrimento dos portugueses, é uma ofensa à memória da resistência e à luta do povo.

Devemos lembrar que, logo a seguir ao 25 de Abril, em actos carregados de grande significado ideológico, essas figuras, as suas fotos e referências, foram retiradas das escolas e locais públicos pelo povo, pelos professores, alunos, pais, pela população.

Esses foram passos enormes na instauração da democracia e na correcção de injustiças. Por isso, retomar agora essas sinistras figuras sem qualquer contextualização, colocando-as assim, lado a lado, com os representantes do período democrático, é, no mínimo, ofensivo.

Bem sabemos que o passado não pode ser alterado. Os ditadores e a ditadura não podem ser esquecidos. Fazem parte de um dos períodos mais negros da história do País e do mundo. Devem ser lembrados, sim, mas de outra forma, com as devidas diferenças e sempre com a informação de quem foram e das suas responsabilidades e crimes para que, sobretudo os mais novos, possam conhecer esse passado e, conhecendo-o, rejeitá-lo, revendo-se, isso sim, nos valores de Abril.

Estas posturas e propósitos vão-se repetindo com alguma frequência. Desde o conhecido autarca de Santa Comba Dão, que tomou como motivo principal de divulgação e promoção do seu concelho a «imagem de marca» da sinistra figura de Salazar ou, como um outro, numa autarquia mais próxima de Lisboa, no Cacém, decidindo propor Marcelo Caetano para nome de uma rua, esquecendo ou não querendo saber que foi, nesse período, que mais investimentos se fizeram na PIDE, em meios e número de agentes e informadores, que a tortura do sono atingiu limites até então desconhecidos, que as cadeias se encheram em Portugal e nas colónias e que milhares de jovens morreram nas guerras coloniais.

Bem sabemos que esta exposição, antes de chegar à Assembleia da Republica, foi recomendada pela Câmara Municipal de Barcelos, tal como, no ano passado, a homenagem ao Cónego Melo também foi promovida pela Câmara de Braga, mostrando, assim, que o PS, lamentavelmente, também se deixa envolver nesta exaltação, em vez de tomar como seu estandarte o antifascismo de muitos dos seus obreiros e militantes. É que, nestas coisas, a abstenção não basta.

O fascismo em Portugal e na Europa ceifou vidas, submeteu gerações de jovens a terríveis condições de exploração e desigualdade, à privação dos direitos mais elementares. Os responsáveis desses regimes não podem, por isso, figurar ao lado de democratas. O seu lugar de exposição terá de ser necessariamente outro.

A este propósito, neste ano em que se comemora os 40 anos do 25 de Abril, é importante que se recomende de novo a leitura da história desse período do fascismo, para que a democracia esteja mais defendida.

São muitos os ataques deste e de anteriores governos contra as conquistas democráticas, contra a democracia e os seus valores e conteúdo. Todos os dias nos são revelados exemplos dos interesses económicos que comandam essa ofensiva. A desculpabilização e as tentativas de reabilitação dos responsáveis do fascismo são também ataques à nossa vida democrática.

Tal como a URAP frequentemente tem afirmado, é preciso não esquecer: «para a grande maioria dos portugueses e em particular para os trabalhadores, 48 anos de ditadura fascista (1926-1974) significaram privação de liberdade, exploração, miséria, repressão, emigração, guerras coloniais, obscurantismo cultural e proibições sem fim».

Os espaços da Assembleia da Republica deviam ser locais não para acolher a exposição com bustos de responsáveis do fascismo mas sim manifestações artísticas e culturais onde se valorize e exalte os valores da democracia e da liberdade.

Esta exposição, tal como está, é uma lamentável ofensa à democracia e ao 25 de Abril.

 



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