A palavra
O descoco dos partidos da maioria exibiu-se à vara-larga na apresentação do Orçamento do Estado, na Assembleia da República. Mas os próceres do entremez foram os chefes da banda, evidentemente.
O que de mais relevante protagonizou Passos Coelho foi ter começado por afirmar, em intervenção escrita, que em 2016 ia «repor a totalidade» dos cortes nos salários e pensões da Função Pública (como ordenou o Tribunal Constitucional) para, algumas horas depois e «de improviso», se desmentir a si próprio ao garantir que «se eu for de novo primeiro-ministro proporei que a reversão salarial seja de 20 por cento em 2016», decidindo-se, portanto, apresentar ao Tribunal Constitucional a mesma proposta que já foi chumbada, para além de garantir que vai impor a mesma «política de austeridade» sobre os do costume – trabalhadores e pensionistas.
O homem parece o lacrau da fábula: faz um primeiro esforço para se apresentar «moderado» mas a pulsão de envenenar o discurso é-lhe mais forte. O pormenor de ter lido na primeira parte e desmentido de improviso na segunda também dá ideia de que Passos nem lê antecipadamente os discursos que lhe escrevem e emenda-os sem preocupação de minudências, como a de se desmentir a si próprio.
Portas, com a «pose de Estado» que nunca tem vergonha de exibir, debitou coisas extraordinárias do alto da sua peanha, onde vociferou, hirto e feroz: este «é o primeiro Orçamento em que há recuperação do poder de compra» e «redução acentuada do desemprego», este «é o primeiro Orçamento em que há expectativa de crescimento económico acima da Zona Euro» e outros «primeiros Orçamentos» como o que terá «uma redução significativa do IRS para famílias com filhos» (esquecendo a trapalhada que remendaram com uma «cláusula de salvaguarda» para atamancar o aumento de IRS que esta medida implica para os que não têm filhos) ou ainda em que «os trabalhadores das Administrações Públicas (sic) que terão uma «inversão da trajectória de reduções» que será «20 por cento a mais do que tinham a menos» (o homem não resiste a uma antitesezinha), rematando com uma citação de Jorge Luís Borges – «se não conseguem suportar a realidade mudem de conversa» –, no que provavelmente considerou uma brilhante exibição de cultura, a tonitruar (pois claro) uma desfaçatez sem medida.
Aliás, uma desfaçatez que pesa em todo o discurso, à altura do homem que «ganha o penta», que faz «um novo 1640» ou compara Portugal ao Cristiano Ronaldo, porque «nunca desiste».
E está tudo dito, a merecer a citação de uma outra frase, proferida por Portas em meados do ano passado: «Tenho uma palavra e não duas ao mesmo tempo».
Pois não. Ele e todo o Governo sempre foram uma «mudança de palavra» em sucessão, geralmente ao ritmo com que mudam de camisa.
Mas o eleitorado fará a mudança decisiva, quando os expulsar nas eleições, em breve.
É o que se chama ter a última palavra.