Fraude nos transportes
O secretário de Estado dos Transportes já conhece os motivos por que a Fectrans considera que a reestruturação na Carris, no Metro, na Transtejo e na Soflusa prejudica o interesse público, é ilegal e contém mesmo um esquema de tipo mafioso.
O lucro dos concessionários ficaria garantido pelo Estado
Na manifestação de dia 21, até à Assembleia da República, foi afirmada a determinação de prosseguir a luta contra as privatizações nos transportes, em unidade, envolvendo trabalhadores no activo, reformados e utentes, porque «público é de todos, privado é só de alguns»
Na segunda-feira, ao início da noite, a Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações (Fectrans/CGTP-IN) revelou o texto que serviu de base à sua intervenção na reunião que teve, poucas horas antes, com Sérgio Monteiro. O documento fundamenta a acusação de que o Governo tomou uma decisão errada, de três pontos de vista: o que deve ser uma política racional de transportes públicos, a legalidade do processo e a utilização racional dos recursos públicos. Segue apenas «a lógica das parcerias público-privadas, a lógica da subordinação dos serviços públicos aos interesses de grupos económicos privados».
A federação defende que o processo de reestruturação na Carris, no Metropolitano, na Transtejo e na Soflusa deve ser «imediatamente cancelado, face à sua completa ilegalidade, e às dramáticas consequências que traria para os trabalhadores, os reformados, os utentes e a economia nacional».
A Fectrans apela aos trabalhadores «para resistirem a todas as chantagens em curso, para se recusarem a assinar qualquer documento e para se unirem cada vez mais na luta contra este processo de reestruturação». Como o Governo «está a ficar sem tempo para concretizar os criminosos objectivos da sua política», a federação sublinha que «importa aumentar a resistência e construir as alternativas».
«Os compromissos, já assumidos por diversas forças políticas, de que anularão os processos de subconcessão, caso o Governo insista em avançar com eles», merecem a saudação da Fectrans, «mas é preciso ser mais claros e ir mais fundo, e exigimos que essas mesmas forças políticas se clarifiquem sobre o conjunto da reestruturação».
Fusão falsa
Nesta reestruturação, o Governo aponta como objectivo formal a fusão das quatro empresas numa só, passando por um regime de acumulação de funções dos administradores executivos, sob a capa da «Transportes de Lisboa». Mas a fusão não passa de «um artifício técnico-jurídico», acusa a Fectrans.
Na verdade, o Governo pretende «criar uma gestora de concessões e subcontratações, com o pessoal estritamente necessário às regras de passagem de cheques aos operadores privados». Na reestruturação, ficando apenas uma empresa no Estado, «as realidades operacionais estariam ainda mais divididas do que estão hoje», pois o Governo «mantém e cria diversas empresas para serem entregues aos privados»:
– estão lançados os processos de subconcessão da exploração comercial e manutenção do modo autocarro e da exploração comercial do Metropolitano;
– está publicamente assumido passar para a Siemens a manutenção e a propriedade do material circulante do Metropolitano, com os respectivos trabalhadores;
– foi também assumida a intenção de privatizar o planeamento e execução das obras de expansão da rede do Metro (área que hoje é garantida pela Ferconsult, uma empresa do Metropolitano que tem em carteira outros contratos em Portugal, na América Latina e no Médio Oriente);
– foi anunciado que pretendem alienar, por venda directa, a CarrisTur, depois de para esta serem transferidos os eléctricos, os elevadores e os ascensores (retirando-os do serviço público) e também os barcos de turismo.
Estamos perante «uma falsa fusão, com as suas falsas sinergias e poupanças». A Fectrans avisa mesmo que seriam inevitáveis duplicações de funções, devido à obrigação de criar mecanismos públicas de controlo e fiscalização sobre o concessionado, «por mais formais e pouco efectivos» que tais mecanismos fossem.
O negócio é outro
A reestruturação assenta em falsos pressupostos, do ponto de vista técnico, uma vez que contraria os objectivos operacionais da gestão de um sistema de transportes públicos. Os últimos quatro anos já mostraram que a fiabilidade e a segurança diminuíram, foram perdidos milhões de utentes (com a redução da oferta e o aumento dos preços), o conforto piorou e os custos ambientais aumentaram. A reestruturação que o Governo tem em marcha toma como facto consumado estas perdas dos utentes e irá agravar a situação. A Fectrans explica como:
– no Metro, separar infra-estrutura, manutenção e exploração aumentaria os custos e provocaria uma ainda maior degradação da fiabilidade e segurança da operação;
– com as subconcessões, os custos do Estado com a exploração comercial aumentam em largas dezenas de milhões de euros, e isso irá reflectir-se em aumento de impostos ou de preços;
– retirar os eléctricos, ascensores e elevadores do transporte público de passageiros vai reduzir a oferta e aumentar os custos para todos os utentes;
– com um sistema de transportes ainda mais dividido, ficaria mais dificultada a intermodalidade e seriam postos em causa mecanismos centrais da mobilidade na área metropolitana, como o passe social intermodal.
Também nesta vertente, a Fectrans considera a reestruturação «uma fraude», mas tal só sucede porque «não visa melhorar os níveis operacionais». Este processo «visa pura e simplesmente privatizar o máximo possível da operação, criando paralelamente os mecanismos que permitam pagar as rendas que os privados esperam obter». A federação previne que, «em limite, na lógica das PPP, pode acontecer aos transportes públicos o que já acontece a muitas autoestradas: ninguém as usa, mas que importa, o Estado paga, e elas dão lucro aos seus concessionários».
Reportando-se aos cadernos de encargos da subconcessão de autocarros e Metro, a federação salienta que «as empresas públicas ficariam com responsabilidades de até 230 milhões, com receitas inferiores a 170 milhões», e «teriam de pagar a manutenção dos comboios, os juros e amortizações dos investimentos anteriormente realizados e os salários dos trabalhadores remanescentes».
«Mafioso» sem exagero
A federação afirma que este processo «está a ser conduzido à margem da lei».
O Governo está a impor na prática uma fusão sem legislação e a administração em acumulação de funções comporta-se como se a fusão estivesse já feita. A inexistência de uma lei enquadradora permite «todas as chantagens que estão em curso» e é elemento central num «esquema de tipo mafioso para atacar os direitos dos trabalhadores».
Não foi respeitado o direito das comissões de trabalhadores ao controlo de gestão, em casos de reestruturação. Isto viola o Código do Trabalho, onde está vertido um princípio constitucional. Mas a administração das quatro empresas «comprou um parecer jurídico que sustenta que esta reestruturação é uma reorganização da estrutura», «partindo do mesmo princípio mafioso e actuando com um sentimento de impunidade de quem sabe que a Justiça é lenta e favorece os poderosos».
A Constituição incumbe directamente o Estado de garantir a coexistência de um sector público com o sector privado, mas esta reestruturação insere-se numa política que visa desmantelar o sector público.
Para quem pense que será exagerado «chamar mafioso ao comportamento que está a ser adoptado pela Administração destas quatro empresas públicas», a Fectrans deixa uma citação do «Programa de Redução de Efectivos» e traduz o «cinismo» da chantagem sobre os trabalhadores: «oferecemo-vos a liberdade de se irem embora voluntariamente e, se não forem, vão ser despedidos em piores condições».
A redução de pessoal também não corresponde às necessidades das empresas, cujo quadro «está reduzido abaixo das próprias necessidades operacionais», tanto no Metro como na Carris. Para a Fectrans, «os capitalistas que querem explorar os transportes públicos sabem que podem contratar trabalhadores em piores condições e pagando menos», mas «precisam que seja o Estado a despedir e a pagar os custos desse despedimento, que é o que o Governo está a fazer».
Outro alerta tem a ver com o «lease back» a que se tem referido o presidente da acumulação de administrações, Rui Loureiro, prometendo poupanças. A Fectrans avisa que será «mais um roubo descarado» e recorda que, em «operações financeiras», as empresas públicas de transportes perderam nos últimos anos milhares de milhões de euros. A Carris e o Metro, por exemplo, «poderiam ter operado gratuitamente durante 20 anos e não teriam perdido o dinheiro que perderam em swaps».
Chamados à AR
O PCP requereu anteontem que o secretário de Estado dos Transportes e o presidente das administrações das quatro empresas sejam chamados à Assembleia da República, devido a fundadas dúvidas sobre a legalidade e lisura da reestruturação que está a ser imposta, mas também perante firmes certezas de que esse processo não serve os interesses nem de utentes, nem de trabalhadores, nem do Estado.