O livro é um bom camarada

Rui Mota

Há muito que dizemos que o livro é um bom camarada. Abre caminhos para o desconhecido, descobre o que outros tentam tapar, carrega o mundo que se tem e o que se quer. Nele, se for verdadeiro e leal, como serão todos os que se seguem, podemos encontrar amigos para todas as ocasiões.

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«O que me espanta é que, dentro daqueles livros, caibam esses amigos todos de que me falas». Quem fala de todos esses amigos é Francisco, o protagonista de «O Caminho das Aves». Nesse belíssimo tratado da luta e da amizade, os livros estão de tal forma presentes que enformam as próprias personagens. Algo que acontece igualmente em «O Tempo das Giestas», também da autoria de José Casanova. O amor, de perdição, de Teresa e Simão cresce com as páginas de muitos romances. «Falávamos muito sobre livros, ele aconselhava‐me leituras», confessa, no final dos anos 1980, Teresa a Marcos, um jovem militante comunista que se vê envolvido na busca de Simão (seria mesmo esse o seu nome?), também ele jovem militante comunista que deixou de dar notícias a Teresa em 1936, o ano em que abriu o Campo de Concentração do Tarrafal. Ao longo das páginas, evocamos a memória dos 32 antifascistas, maioritariamente comunistas, que lá foram assassinados.

O Tarrafal é uma das mais impressivas marcas do fascismo em Portugal. Mas por todo o mundo multiplicam-se tarrafais, mais ou menos concentrados. Que o digam os sobreviventes de Auschwitz, de Hiroxima e Nagasaki, de Cabul e Gaza, Ucrânia, Iraque, Síria. Que luz estariam a ler? «Lá Longe o Fogo», de João Pedro Mésseder, junta mais de 30 poemas sobre a guerra e sobre «o projecto que as palavras deste livro deixam adivinhar – a paz: direito legítimo dos povos». Com ilustrações de José Santa-Bárbara, é um desses livros que, ao interferir na escolha «entre a bomba/ e a pomba», contribui para que a paz levante voo e se possam encher de outros livros como este a nova escola, irradiando «luz das suas páginas brancas».

Luz tão luminosa como essa que é justamente considerada «a mais bela das conquistas da Revolução»: a Reforma Agrária. Uma conquista que vai muito para lá dos anos de 1974-1976, como demonstra o livro «As 12 Conferências da Reforma Agrária – Um Testemunho da Revolução de Abril». Nele, fazendo uso de documentos, balanços, conclusões, intervenções, traz-se «um registo histórico comprometido da Reforma Agrária, a partir desse expoente democrático que constituíram as Conferências da Reforma Agrária». Um outro país que se construía com a vontade e o esforço dos trabalhadores e do povo, um outro país que é não só possível como necessário. Este livro, da responsabilidade da Associação Povo Alentejano, prova como a realidade ensina e exige de quem nela quer intervir muito mais que qualquer programa meramente imaginado.

É que, como refere Álvaro Cunhal (uma ideia na qual insiste em várias intervenções e entrevistas publicadas no VI tomo das Obras Escolhidas), «uma das características da orientação e do trabalho ideológico do PCP é precisamente a sua força criadora, o abandono de fórmulas, modelos e clichés, e a busca de caminhos e soluções que correspondam à realidade nacional e às particularidades e originalidades da revolução portuguesa», pois «cada revolução, com a capacidade criadora das massas populares e da sua vanguarda, é sempre mais rica de experiências e originalidades do que as melhores previsões poderiam admitir.» E é exactamente nessa linha que se enquadra o livro «Marx, Engels e a Crítica do Utopismo», de José Barata-Moura. Porque socialismos haverá muitos, mas «aquilo que Marx e Engels passam a entender por socialismo e por comunismo não é aquilo que por “socialismo” e por “comunismo”, no costume tradicional, se entendia». Como diz Engels em 1845, do debate com utópicos de várias gerações e origens, resulta o comunismo deixar de ser «um ideal de sociedade o mais possível perfeito» para passar a ser a «penetração na natureza, nas condições, e nos daí resultantes objectivos gerais, da luta pelo proletariado conduzida».

Tudo a ganhar

Nessa luta, diz-nos o Manifesto do Partido Comunista, «os proletários nada têm a perder a não ser as suas cadeias». Cadeias essas que assumem várias formas, sendo a União Europeia, com os seus três pilares fundamentais – o neoliberalismo, o federalismo e o militarismo –, um desses exemplos. De António Avelãs Nunes, três livros, independentes mas complementares, trazem importantes reflexões sobre a crise do capitalismo e sobre esta Europa que nos tentam impor: «A “Europa” Como Ela É», «O Euro – Das Promessas do Paraíso às Ameaças de Austeridade Perpétua» e «Os Trabalhadores e a Crise do Capitalismo». Nestes três títulos, a história da Europa, ou antes, desta Europa (a «Europa neoliberal, a Europa do capital, a Europa que os cidadãos europeus já recusaram») é apresentada como um espaço construído à porta fechada, antidemocrático, onde quem manda são os mercados e esses, por sua vez, não conseguem nem podem desenvolver outro resultado para lá do empobrecimento dos povos.

«A "Europa" está toda errada, é preciso passá-la a limpo», pois «nem o povo português, nem o povo grego, nem os povos da Europa podem pedir a esta «Europa» desenvolvimento económico, justiça social, solidariedade, soberania, democracia. Porque isto não está na natureza desta Europa do euro». O que lhe está na natureza, como aliás na natureza do sistema capitalista, são as crises, as crises de sobreprodução, as crises de realização de mais-valia. E, com elas, o aumento do desemprego, os baixos salários como modelo de desenvolvimento, a precariedade como regra no mundo do trabalho, a pobreza e a exclusão social como destino para cada vez mais amplos sectores da sociedade.

«O estado social não está em risco por ser financeiramente insustentável. O estado social está ameaçado por o grande capital financeiro (e o estado violento e repressivo ao seu serviço) estar apostado na sua liquidação.» Esta é uma ideia que Avelãs Nunes apresenta num dos seus livros, e que Eugénio Rosa, que apresentou na passada semana «Como Garantir a Sustentabilidade da Segurança Social e da CGA», partilha. Numa pequena mas altamente documentada publicação, Eugénio Rosa apresenta dados, confronta propostas e programas, e demonstra que é possível garantir «a sustentabilidade dos sistemas públicos de segurança social e […] os direitos dos actuais e futuros pensionistas». Essa possibilidade, que é aliás uma exigência constitucional, implicará, contudo, romper com os grandes interesses instalados, que vêem na segurança social um chorudo negócio. Só existirá essa ruptura se se tomar uma opção política clara, porque é efectivamente de opção política que se trata.

Tal como foi por opção política que a troika, «que via a mais pequena despesa quando se tratava de identificar e eliminar direitos dos jovens, trabalhadores e reformados, não viu o gigantesco buraco de 4,9 mil milhões de euros num dos principais bancos portugueses». «Dossier BES/GES – Um Retrato do Capitalismo Monopolista em Portugal» demonstra, a partir do exemplo do BES e do Grupo Espírito Santo, a importância do controlo público da banca. Apresentando a história do grupo, a partir da sua origem, em 1911, passando pelo seu enorme crescimento durante o fascismo (como prova o organograma elaborado na clandestinidade por Dias Lourenço), pela nacionalização em Março de 1975 e pela posterior privatização em 1990, este livro fornece um conjunto de informação que permite «traçar o perfil de um grande grupo económico e financeiro», mostra «como todas essas operações são características de uma gestão das instituições financeiras feita ao sabor dos objectivos dos seus accionistas», e demonstra que um grupo só pode crescer desta forma graças à promiscuidade com o poder político. Trata-se de um instrumento essencial (e como os acontecimentos desta semana continuam a revelar absolutamente oportuno) para a intervenção dos comunistas na sua luta pela superação do capitalismo, pois (e ao contrário do que a Comissão de Inquérito acabou por concluir) o destino do BES/GES «era articulado ao pormenor, arquitectado e concretizado para a facilitação de práticas de acumulação capitalista», e portanto as culpas não se resumem ao «modelo de gestão» ou à «pessoa que representava a figura central dessa gestão».

«Incendiar o dia»

Não haveria o «monstro moral» que tentaram criar para esconder as suas próprias responsabilidades, o que não quer dizer que no mundo da banca não haja vigaristas a tentar sugar a vida dos incautos. Que o diga o pobre João, convidado pelo senhor Vincent Cheng, do Hong Kong and Beijing Banking Corporation, a participar num negócio que envolve dois milhões e meio de dólares. Um verdadeiro negócio da China, o que nos conta Nuno Gomes dos Santos na novela «Goodbye, Mr. Cheng». Pelo meio desta história de aldrabices cibernéticas, uma história de amor que começa com bocas de paixão a fugir a horas certas e acaba com boca de feijão, com sonhos a balançar os «dias mecânicos e uniformes».

São muitos livros para intervir no nosso tempo, não o «tempo, mundo e pensamento únicos» mas os «tempos possíveis» e os «possíveis de mundo», como nos diz Manuel Gusmão no terceiro volume da antologia poética «Contra Todas as Evidências» (que junta ao livro «A Terceira Mão», publicado em 2008, a obra inédita «O Clamor dos Espelhos»). Carina Infante do Carmo, na apresentação do livro na Festa do Avante!, abordando o trabalho de Manuel Gusmão, reflectia sobre o papel que os livros podem desempenhar na nossa vida colectiva: «futuro outrora é a figura mais ajustada ao desenho constelar e dialógico da história humana, seja ele o do devir colectivo, seja o da leitura e da escrita literárias, como fenómeno social ou experiência pessoal: nada a estranhar quando literatura e política são elos indissociáveis na obra poética e ensaística deste escritor, por ambas implicarem um fazer transformador da vida humana».

Em todos estes livros, o protagonista principal é a terceira mão de que fala Manuel Gusmão: «a mão armada do leitor». Que não faltem os leitores para incendiar o dia.