Defender os serviços públicos

João Dias Coelho

Num mundo atravessado por enormes injustiças sociais, e num tempo em que o sistema capitalista procura recuperar parcelas perdidas por efeito da luta dos trabalhadores e dos povos ao longo de séculos, e particularmente após Revolução Socialista de Outubro na então Rússia czarista e a segunda guerra mundial, e no caso português após a Revolução de Abril que consagrou no texto constitucional as funções sociais do Estado; num tempo em que os estados da classe dominante assumem a atitude revanchista de limitação ao acesso a serviços públicos básicos essenciais, destruindo ou fragilizando as estruturas que o prestam, mercantilizando-os abrindo as portas através de concessões e privatizações várias ao capital monopolista, processo a que não é alheia a directiva da EU sobre serviços de interesse geral e ao Tratado Transatlântico de Investimento e Parceria (TTIP) que a Comissão Europeia se prepara para a acordar com o EUA e o Canadá; num tempo em que os povos lutam e resistem procurando assegurar os direitos conquistados e conquistar novos direitos, comemora-se hoje o dia das Nações Unidas (ONU) para o serviço público.

É naturalmente um dia que assinalando a importância dos serviços públicos à escala mundial e o avanço civilizacional que a sua implementação significa, não pode esconder na nuvem mediática os milhões de seres de humanos que a eles não têm acesso, nem o papel da maioria dos governos ao serviço do grande capital na sua destruição.

Em Portugal, apesar dos resquícios positivos deixados pela revolução republicana de 1910, o que imperou durante os 48 anos da ditadura fascista foi o assistencialismo. Com a Revolução de Abril e a aprovação da Constituição da República em 2 de Abril de 1976 foi consagrado o direito a todos terem o direito à Segurança Social Pública e Universal, à protecção na saúde através do Serviço Nacional de Saúde universal geral e gratuito, à educação e ao ensino em todos os seus escalões, através da escola pública de forma a garantir o direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar, mas também de acesso à fruição e criação cultural, à ciência, ao desporto, justiça, assumindo o Estado o papel nuclear na prestação desses serviços públicos.

Por força da política de direita desenvolvida durante quatro décadas pelos partidos da política de direita, com particular gravidade nos últimos quatro anos de governo PSD/CDS, as tentativas e mesmo consumação da fragilização e até destruição de vários serviços públicos foram mais do que muitas, ficando à beira de provocar uma ruptura com a conquista de serviços públicos universais e gerais que a Revolução de Abril de Abril nos proporcionou.

Foi este processo deliberadamente construído que conduziu a que hoje o SNS, a Escola Pública, os serviços da Segurança Social entre outros se encontrem à beira da ruptura.

Neste contexto importa lembrar que o processo de desmantelamento da administração pública conheceu com o governo do PS/Sócrates um momento importante, sendo acelerado depois pelo governo PSD/CDS, no qual o guião para a Reforma do Estado, apresentado em articulação com a troika estrangeira pelo então vice-primeiro-ministro Paulo Portas, era peça importante no objectivo da alienação do papel do Estado nas funções sociais que constitucionalmente lhe estão cometidas, reduzindo-o às chamadas funções de soberania (no essencial associadas a instrumentos de dominação).

Essa pretensão, por agora travada com a derrota do governo PSD/CDS, não está entretanto derrotada, pois sem prejuízo da valorização dos passos dados decorrentes da posição conjunta assinada entre PCP e PS mantêm-se na acção governativa opções que não rompem com o percurso que tem reduzido o papel do Estado em funções e responsabilidades essenciais na prestação do serviço público, facto que é indissociável da não libertação dos limites e condicionamentos impostos pela União Europeia. O capital monopolista não desistiu de consumar o seu confessado objectivo de face à crise de sobre-produção capitalista substituir o Estado na «prestação» de serviços públicos, preenchendo assim um espaço para a obtenção de lucros.

Assinalar hoje o dia da ONU para o serviço público, cinco dias depois da grande manifestação realizada em Lisboa em defesa da escola pública e das funções sociais do Estado, é a manifestação de um processo que hoje não começou e hoje não termina.

A luta em defesa dos serviços públicos, pelo cumprimento da Constituição da República, pela política alternativa patriótica e de esquerda vai continuar.

 



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