Cimbelino

José Carlos Faria

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Neste ano de 2016 completam-se 400 anos sobre a morte de Shakespeare. Para assinalar o 4.º centenário, a BBC convidou um largo número de actores e actrizes para lerem pequenos excertos retirados da vasta obra deste nome fundamental da história do teatro e, em paralelo, procedeu à gravação de algumas das suas peças, numa recriação do que se pensa terem sido as condições de representação quando pela primeira vez foram levadas à cena, entre os finais do século XVI e o início do século XVII. Isto apesar das teses mistificadoras e de classe (um plebeu não poderia nunca escrever assim, insistem) que, confundindo indícios, vagos e não fundamentados, com provas consistentes, pretendem ter sido Edward de Vere, 17.º conde de Oxford, quem escreveu obras de  Shakespeare.

Porém, o que importa, de facto, é o legado de uma vasta dramaturgia de enorme sensibilidade poética e que continua a interpelar-nos naquilo que de mais humano possuímos. A atenção dada a um clássico que não é apenas nacional mas que adquiriu uma dimensão universal, leva a que uma das principais companhias teatrais britânicas seja a Royal Shakespeare Company, dedicada exclusivamente à abordagem da obra do autor. Por cá, seria bom que Gil Vicente, o nome mais importante do teatro europeu da sua época, suscitasse algo de parecido. Contudo, infelizmente, não é isso que se verifica.

A política de suborçamentação crónica ligada à redução dos apoios à criação artística em geral, e ao teatro em particular, conduziu o panorama cultural português a um estado catastrófico. É por isso de saudar, desde logo pela superação de uma conjuntura espinhosa, a montagem, nas ruínas do Carmo, pelo Teatro do Bairro, de «Cimbelino», uma peça de William Shakespeare, traduzida por Luísa Costa Gomes e encenada por António Pires.

«Cimbelino», um dos últimos textos de Shakespeare e um dos mais longos, misturando prosa e poesia, foi provavelmente apresentado, com bilhetes mais caros, no teatro fechado de Blackfriars, o qual, comparativamente com o teatro sem tecto do Globe, dispunha de melhores condições técnicas. Este último aspecto é relevante dado o recurso à teatralidade de aparato, como se pode ler numa das indicações cénicas em que Júpiter, deus ex machina vindo para resolver e pacificar as relações contraditórias das gentes, deve descer «sentado numa águia, entre trovões e relâmpagos», lançando raios, e que é sentido como «os dedos das potências lá em cima que tocam/ a harmonia desta paz».

A trama do enredo é complexa, numa mistura de estilos, envolvendo o onírico, o fantástico e maravilhoso, o sobrenatural, o mítico, numa base histórica documentada na qual Kimbelinus se torna rei da Britânia em 33 a.C., mantendo uma relação amistosa com os romanos, pagando-lhes tributo mesmo quando isso podia ser evitado. O seu sucessor, Guidério, recusou-se a tal e morreu na guerra que por este motivo se travou. Shakespeare inspira-se neste assunto (que afirma uma primeira identidade nacional britânica) e faz coexistir a Roma Antiga com o Renascimento, o País de Gales primitivo e a Britânia da ocupação romana, num processo que alude a tópicos dispersos, oriundos de, pelo menos, sete textos da sua própria dramaturgia anterior. «Cimbelino» corresponde a um modelo experimental que viria ainda a ser aperfeiçoado.

O investigador Northop Frye refere: «Há que ler, em Cimbelino, o sentido de uma grande transformação nos destinos humanos a acontecer fora do palco. (…) Porém, Cimbelino, não é, de modo algum, uma peça histórica: é pura lenda popular». Denominavam-se, pois, «romances», as derradeiras peças de Shakespeare, doseando a tragédia e a comédia, associando as «masques», pantomimas e representações alegóricas do jogo cortesão, a uma persistente e genial capacidade de desmontagem dos mecanismos de Poder. A corte de Cimbelino mostra-se apodrecida pela mentira, traição, mesquinhez, sede de dinheiro, reflexo do contexto quotidiano da era Isabelina em que Shakespeare viveu: guerra e fome, crise nos campos, aumento da população, inflação e crise das finanças estatais (impossível não pensar nas causas do «Brexit»). Numa «guerra civil da consciência», com a «mudança dos centros do mundo e do universo», deparava-se uma clivagem entre a aristocracia em crise e depois a burguesia ascendente (cuja chegada ao Poder, com os Puritanos, acarretou, em 1642, o encerramento dos teatros) e, do outro, a massa popular empobrecida, rural e urbana.

A peça acaba com a palavra «paz», que, neste caso, significa a capitulação e a submissão à poderosa força do Império.

E como clarões, ecoam frases:

«Necessário é apenas pôr em marcha as forças que anseiam por mover-se.»

«Digo-te eu, companheiro: pelo caminho que sigo a ninguém faltam olhos que o possam conduzir, mas há por aí quem os feche e os não queira usar.»

«Por estranho que seja, é no entanto verdade…»

Luís Miguel Cintra chamou-lhe «um teatro que a si próprio se usa para assim não desistir do Homem.»




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