A criatura e o criador
Houvesse discernimento, e os que acordaram assarapantados com a eleição de Trump, tomados por um misto de sentimento depressivo e de quem viu o diabo, facilmente descortinariam no nexo entre criatura e criador que as razões para a surpresa são escassas. É verdade que o estado de euforia semeado pelos partidários de Hillary os inebriou. A diabolização de Trump, facilitada pela própria criatura, era uma peça chave para apresentar Hillary como um poço de virtudes, a fonte dos valores ocidentais, a encarnação da concórdia e da tolerância. De duas penadas, fazia-se o caminho que asseguraria a vitória da candidata e branqueava-se, por contraposição ao malévolo opositor, o percurso de activa intervenção na política de guerra, agressões, desestabilização e caos da herdeira da administração Obama.
Pelos vistos há quem não queira aprender com a vida. Grosso modo, os que assinalaram com desmedida euforia a eleição de Obama, como se tivessem acabado de tropeçar com a terra prometida, são, mais coisa menos coisa, os mesmos que agora foram apossados por um estado de fobia colectiva. Mandaria a prudência, olhando para o manifesto exagero quanto às expectativas alimentadas com Obama, não tomar por certo o que enxergam aterrorizados neste novo ciclo da administração. Mesmo que, com idêntica prudência, se não subestime o percurso e posicionamento nada recomendáveis do novo inquilino da Casa Branca.
Bem vista as coisas, nem se descortina razões fundadas para isso. Em rigor, Trump dá expressão ao sistema que representa. Beneficiando dos problemas, desigualdades e injustiças que o capitalismo e a sua natureza propiciam ali mesmo no coração do sistema. As apreensões quanto a sinais de intolerância racial, violência ou de desrespeito pelos «direitos humanos» não precisam de ser procuradas em Trump, mas sim no que os EUA representam – desde o apego à pena de morte à cultura de guerra e de violência. E aos que cinicamente cá deste lado do Atlântico se insurgem contra muros ou a perseguições a imigrantes melhor fariam se denunciassem o que na União Europeia campeia de muros, ostracização e intolerância perante os milhares de refugiados que fogem da destruição dos que, ainda sem Trump, se encarregaram de semear.