Almas inquietas
As almas do costume estão em alvoroço. Habituados que estão a contar com «dinheiro em caixa», no sentido literal e metafórico do termo, o capital e seus representantes vagueiam entre o incrédulo e o desconcerto. No guião usual do livro de «deve e haver» a que o capital está afeiçoado, a escrita terá dado para o torto. Determinado que está, por direito consuetudinário, adquirido por anos de concertações bem sucedidas, que é na coluna dos «haver», e só nessa coluna, que deve ser tida como legítima depositária do que houver a inscrever, entende-se o desatino que por aí anda.
Percebe-se assim que João Vieira Lopes, figura de proa da confederação patronal do comércio, não consiga reprimir a sua indignação questionando «se o parlamento não a respeita, para que existe concertação?». O homem não deixa de ter razão. Preenchido que estava a condição que por opção de classe cabe aos governos cumprir, encaminhada que parecia estar mais uma vez a ordem natural das coisas com o devido preenchimento da coluna do livro que deve ser acautelada, eis que a inopinada atitude de Passos Coelho, saída de onde menos esperaria, ameaça esborratar a escrita.
Afastada que seja a bruma argumentativa em torno da concertação, e os méritos que alguns nela identificam por experiência feita, e sobretudo enquanto apólice de garantia de ganhos aí adquiridos, o que no fundo move confederações patronais e os seus representantes políticos é o ataque ao salário mínimo nacional e aos salários em geral. Ouça-se Passos Coelho verberando o aumento dos dois últimos anos, comparando-o com a evolução da competitividade ou com o crescimento económico, para chegar ao que de facto pensa e ambiciona para o País: um modelo de baixos salários, uma política orientada para assegurar os níveis de exploração indispensáveis à acumulação de lucros, uma trajectória de rendimentos em que não sendo o congelamento de salários bastante, se lhe acrescenta, como o seu governo acrescentou, o corte do valor de salários como medida profilática.