O regresso do fogo

Correia da Fonseca

Tanto quanto a questão pode ser avaliada pelo cidadão comum e desprovido de informações especiais, no primeiro semestre do ano em curso o nosso país não terá suportado tão altas temperaturas como as registadas em igual período de 2017 com as trágicas consequências de que bem nos lembramos. Ao comum das gentes, afigura-se que este primeiro semestre foi mais ameno em matéria de calor, e acresce que algumas fortes chuvadas, em certas zonas bem mais fortes do que seria desejável, também contribuíram para que se instalasse um certo clima de tranquilidade quanto ao regresso de incêndios por esse país fora. Assim, foi porventura com surpresa que o telespectador encarou a informação, prestada em rodapé pela RTP, de que este ano já ocorreram mais de 270 fogos, presume-se que em áreas rurais, pois não faria sentido que uma contabilização demasiado integradora adicionasse aos incêndios mais ou menos florestais os fogos havidos em ruas e travessas de cidades e vilas. Aliás, bem se sabe que, por mais consternantes que sejam, os incêndios em contexto urbano nunca se constituíram, sequer de longe, em catástrofe nacional como a que em 2017 desabou sobre o nosso país, primeiro em Junho/Julho e depois em Outubro.

Mãos, fogos e ganhos

Este número superior a 270, de facto 273, veiculado pela RTP, surpreende pelo menos por duas razões: pela sua grandeza que quase se aproxima do inquietante ritmo médio de um fogo por dia ao longo do ano, e porque constitui uma informação inesperada. De facto, sendo bem conhecido o apetite que as operadoras de televisão têm não apenas por desgraças de qualquer ordem mas também por notícias que de algum modo tenham parentesco com infelicidades, sustos ou tristezas colectivas, espanta que no nosso país já tenham ocorrido este ano 273 fogos sem que a TV nos tenha dado conta, ainda que breve, da maioria desses factos. Porém, esse será o menos grave aspecto da informação agora prestada: o que mais apelará para a nossa curiosidade é, num primeiro plano, o legítimo desejo de saber mais sobre os referidos fogos (dimensão, causas, duração, coisas assim), e num outro plano o direito de sabermos em que medida é que parte de tais fogos foi devida a mãos criminosas que legitimamente podemos supor que continuam a actuar. Mas regressemos a um ponto anterior: então acontecem 273 fogos em menos de seis meses, fogos com dimensão mínima para justificarem registo, e a televisão não nos dizia nada? E prossigamos: agora, que já nos disse, não vai esforçar-se por acrescentar mais alguma coisa, como aconteceram tais fogos e, ponto de primeiríssima importância, quem eventualmente ganhou alguma coisa com eles (e há vária espécie de ganhos, bem se sabe…)? Neste assunto, que pelo menos é grave e depressa se pode revelar trágico, não tem a televisão o dever cívico e jornalístico de investigar?




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