A ferradura e a cavalgadura
Carlos Moedas, homem da Goldman Sachs, mordomo da troika entre 2011 e 2015, foi premiado com o cargo de comissário europeu. É nessa qualidade que dispõe de uma generosa página semanal no diário do grupo Cofina, por onde passeia o seu deslumbramento com a UE e outras indigências.
Há dias, Moedas decidiu trazer às páginas do Correio da Manhã «a teoria da ferradura», que alegadamente descreve a proximidade entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Ambas «quase se tocam como os pólos opostos de uma ferradura de cavalo». Para abonar a favor da dita teoria, Moedas alude à realidade do Parlamento Europeu e faz uma confissão pungente: «durante 4 anos vi esta aliança destrutiva e quase irracional». Segundo ele, «com um único objectivo: destruir a Europa». Moedas não expôs a teoria em abstracto, fez questão de a ilustrar com exemplos concretos. Para tal, socorreu-se das declarações do ministro do interior italiano, o fascista Matteo Salvini, que acusou a UE de impor restrições ao investimento público em infra-estruturas, a propósito da queda da ponte em Génova, e equiparou-as à posição do PCP que, segundo Moedas, «culpava Bruxelas pela falta de investimento na ferrovia portuguesa». Para comprovar a teoria, não faltou sequer a invocação de Lénine, que segundo o afoito Moedas «disse que uma Europa unida seria impossível ou reaccionária e que seria sempre construída para sufocar o socialismo».
Em plena Primeira Guerra Mundial, na pré-história da integração capitalista europeia, numa altura em que a ideia de criação dos Estados Unidos da Europa justificava um prolixo e aceso debate, a afirmação de Lénine foi a seguinte: Do ponto de vista das condições económicas do imperialismo, isto é, da exportação de capitais e da partilha do mundo pelas potências coloniais «avançadas» e «civilizadas», os Estados Unidos da Europa, sob o capitalismo, ou são impossíveis, ou são reaccionários. Só palas de cavalgadura (não ferraduras) podem obnubilar o alcance e o acerto da afirmação, depois de duas guerras mundiais e transcorridas seis décadas de integração capitalista europeia.
Moedas haveria de mostrar ainda mais claramente ao que vinha, escrevendo mais abaixo na mesma página: «Em Portugal falamos pouco sobre o terror que foi o comunismo».
Não fossem as palas, poderia Moedas olhar as ferraduras sobre as quais arrasta o seu anticomunismo. E fazendo-o, constatar a proximidade entre ele próprio e fascistas de matizes diversos. Com efeito, nem Salvini, nem Orban (membro do mesmo Partido Popular Europeu a que pertence Moedas), nem outros que tais, desdenhariam nem do seu anti-comunismo, nem das medidas tomadas pelo governo de Moedas, visando aumentar a exploração e a concentração da riqueza.
Moedas e Salvini defendem ambos a opressão e a exploração capitalistas. Pretendem perpetuá-la. Se procuram fazê-lo, neste momento, por vias aparentemente diversas, será mais para aumentar as probabilidades de sucesso de tal empresa. Mas ambos querem, acima de tudo, assegurar a manutenção de uma ordem social iníqua, a do capitalismo.
É isto que os une, mais do que aos pólos opostos de qualquer ferradura.