Cantar o trabalho

Manuel Pires da Rocha

O Trabalho é assunto de canções nos quatro cantos do Mundo

Transformam-se os dias em noites, as vidas em mortes, os Invernos em Primaveras. Alinhados os elementos e as criaturas, desempenhando os respectivos papéis, a natureza foi seguindo o seu curso de milhões de anos. Diferentes, porém, das demais criaturas, calhou aos humanos serem capazes de juntar a habilidade de mãos à agilidade da cabeça, juntando ao velho e natural mecanismo transformador um novo mecanismo de transformação universal – o Trabalho.

Inicialmente o Trabalho há-de ter servido para acudir às necessidades da sobrevivência. Mas, adiante, viria a vontade de transformar pigmentos e sons naquilo a que chamamos Arte, trabalho também, de resto. Nos trabalhos da Arte os humanos criaram belezas e fealdades, sublinhando os traços da vida que lhes mereceram registo e argumento. Alguns tomaram a forma de Música.

Num processo histórico movido pela luta de classes, o Trabalho é o assunto da voz que, consciente da sua pertença de classe, canta «camponês alentejano, camponês agricultor / tu trabalhas todo o ano, dás produto ao lavrador / dás produto ao lavrador, tua vida é um engano / ninguém te dá o valor, camponês alentejano».

Cada qual com o seu engenho, o compositor italiano Luigi Nono denunciou as condições de trabalho dos operários siderúrgicos italianos produzindo La Fabbrica Illuminata, os sons da fábrica Italsider em plena laboração, vozes de operários e a leitura de documentos sindicais acentuando a intenção política da obra. Também a islandesa Bjork usará a «voz» da fábrica na escrita da canção Cvalda na denúncia da desumanização das relações de produção.

Não muito longe dali, John Lennon escrevia Working Class Hero (Herói da Classe Operária), classificada no seu país como «canção política». Lennon concorda e aumenta os receios da classe dominante: «Eu acho que é uma canção revolucionária – é realmente revolucionária.» Também Bruce Springsteen escreve uma canção revolucionária, Factory (Fábrica) colocando-se ao lado do operário de «uma vida de trabalho com a morte no olhar».

Confirmam as canções que aqui referimos que a condição de vida de um operário dos EUA de Springsteen, ou da Liverpool de John Lennon, não é diferente da do operário chileno da canção Te Recuerdo Amanda de Victor Jara ou da do operário também de Foi a Trabalhar, de Sérgio Godinho. Por isso é que, num tempo de patética imposição da «concertação social», numa sociedade capitalista desconcertada por natureza, cantar o Trabalho é sonorizar o futuro.

Não se sabe qual foi a primeira canção da primeira luta, mas sabe-se que A Internacional herdou os cantos que a terão precedido e permanece como canto universal dos trabalhadores, cantado nas muitas línguas da Humanidade. Acompanhado de perto pelo Hino da Intersindical descoberto por Luís Cília (compositor de Avante, Camarada!) no corpo da canção Guerrilheiro, de autor anónimo do século XIX (1852).

Brotam as canções conforme as necessidades e o acolhimento por aqueles a quem se dirigem. Em Parva Que Eu Sou, Ana Bacalhau denuncia o trabalho não remunerado, num «mundo tão parvo / onde para ser escravo é preciso estudar». Ao mesmo tempo, um coro de milhares de jovens cantava na passada edição da Festa do Avante! o tema de Boss AC reclamando «Tantos anos a estudar para acabar desempregado / Ou num emprego da treta, mal pago / E receber uma gorjeta que chamam salário».

As canções em que o Trabalho é ferramenta ou argumento de emancipação seguem, afinal, o curso que as vidas traçam, inscrevendo-se muitas vezes nos caminhos que acompanham. São todas elas importantes. As essenciais, porém, serão sempre aquelas que tracem caminhos, juntando vozes e vontades num coro determinado a que «façamos nós por nossas mãos, tudo o que a nós diz respeito!».




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