O tempo dos monstros
«A crise consiste no facto de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno verificam-se os mais variados sintomas mórbidos» Da cela onde, há 80 anos, viria a morrer, Gramsci descrevia os nossos tempos com sibilina precisão. Donald Trump, arrais do capitalismo mundial e pontífice das ocidentais democracias à sua imagem criadas, veio a terreiro mandar quatro congressistas democratas «para a terra delas». Literalmente. O mundo, já algo dessensibilizado para os tweets de Trump, lavrou a cita nos rodapés dos noticiários e mandou arquivar, para amnésia futura, sob «Trump a ser politicamente incorrecto». Mas Ocasio-Cortez, Ayanna Pressley, Rashida Tlaib e Ilhan Omar são, note-se, estado-unidenses: as primeiras três por nascimento, a última por cidadania adquirida em criança. E Trump sabia-o, como também sabia que Obama nascera nos EUA, o que tampouco o impediu de, até hoje, insinuar o contrário. A nacionalidade é a mais importante arma ideológica de Trump, que se declara, aliás, «nacionalista». Na mesma tirada de tweets, Trump descreveu as congressistas como «anti-América», nação que as acusou de «odiar» e prometeu-lhes que «A América nunca será comunista», pelo que «SE NÃO ESTÃO BEM AQUI, VÃO-SE EMBORA» [sic]. Para o magnata, ser «americano» é uma ideologia: rezar ao mesmo deus, odiar os mesmos inimigos, venerar os símbolos nacionais, amar as forças armadas, ter medo da diferença e pertencer à «raça branca». Este, podia tê-lo escrito Gramsci, é, efectivamente, o tempo dos monstros.
A ideologia nacional de Trump não é nova. Foi sendo, durante o último século, visceralmente embutida na consciência popular. Theodore Roosevelt dizia que o «americanismo» é «uma questão de espírito, convicção e dever, e não uma questão de crença ou de nascimento», mas, e Trump percebeu-o, o conceito tão moldável que com ele também se pode dividir a classe trabalhadora, ganhar eleições e construir o fascismo.
Leia-se por este prisma a guerra declarada por Trump aos trabalhadores imigrantes. O Presidente dos EUA chama aos imigrantes «violadores» e «traficantes», refere-se publicamente às suas pátrias como «países de merda», encoraja a delação dos não-documentados e celebra, ufano, «as maiores rusgas de sempre». A Casa Branca, que esta semana declarou o fim do asilo, franqueou o trilho a milhares de actos de violência nas ruas, nas escolas e nos locais de trabalho de todo o país, alargando ainda o vasto sistema de campos de concentração ao longo da fronteira com o México onde crianças são enjauladas, abusadas e, por vezes, «suicidadas».
Há metade de uma América, ideologicamente americana, com cicatrizes da guerra civil, que aceita tudo isto. E é assim que alguém um dia patrioticamente faz notar que nos campos de concentração não cabem só imigrantes.