- Nº 2394 (2019/10/17)

As canções das nossas lutas

Argumentos

No largo do Pelourinho de uma aldeia transmontana, por ocasião da Festa dos Rapazes, um jovem tocava a Carvalhesa na sua gaita de foles. Aquela mesma Carvalhesa que se entoa e dança nos terreiros da Festa do Avante!. Acerquei-me dele e perguntei-lhe de que velho gaiteiro tinha aprendido o toque. Respondeu-me que nunca a tinha ouvido a nenhum gaiteiro dali, já que os pais tinham emigrado, jovens ainda, para Lisboa, e ele já por lá tinha nascido. Regressava à terra dos pais por alturas das Festas, e ali se afeiçoou à função de gaiteiro, que ouvia nas alvoradas. Mas aquela Carvalhesa tinha-a aprendido nas ruas de Lisboa, de ouvi-la «nas aparelhagens de som dos carros da política».

Desiludido ficaria qualquer estudioso do assunto etnográfico com o episódio que aqui se relata. Mas mal. Porque o encanto do relato está em que a «transmissão» nunca deixa de ser produto da História e, por isso, o mecanismo de passagem de testemunho não tem de ser o de uma geração para a geração seguinte. Aquela Carvalhesa – que foi registada em pauta musical por Kurt Schindler e adaptada por Fausto B. Dias – há-de ter morrido junto do gaiteiro que, por último, a terá tocado. E ressuscitou décadas depois, no mesmo lugar, mas nas mãos de um jovem gaiteiro de Lisboa que se deixou tocar pela propaganda sonora do Partido Comunista Português.

A música (a Arte) é argumento político poderoso na vida toda do PCP, nunca usada como adereço de um espectáculo daqueles em que a forma se sobrepõe ao conteúdo. Também nas acções de campanha eleitoral, desde o tal carro de som até ao comício, a música não ocupa um lugar diferente da intervenção falada – quer em presença, quer em significado –, nunca se resumindo a uma operação de «encher o olho» (como naqueles casos em que acontece a ilustração sonora de recorte hollywoodesco que acompanha os «líderes» entre o mundo dos comuns e o olimpo da «classe política»). Quando se escreve nos cartazes das acções de campanha da CDU, ou nos eventos do PCP, a expressão «intervenção musical» é isso mesmo que se quer dizer: mexer no mundo com a música também.

O reportório da música de intenção revolucionária é, em Portugal (e no mundo), muito vasto e abarca várias formas de ser música, seja moda de protesto da praça de jorna, na canção de voz e guitarra ou na obra da chamada «música erudita». O Cante Alentejano ou o Fado eram, muito antes de serem património classificado pela UNESCO, património experimentado nos lugares de querer uma sociedade sem classes.

Terá sido ainda no tempo do fascismo que a «tradição» da música nos lugares da luta se afirmou. O 25 de Abril herdou centenas de canções mil vezes apresentadas nas colectividades de recreio e que, de repente, saíram para o espaço aberto sob a forma de sessões de «Canto Livre». Foi o tempo de substituir o espaço sonoro do nacional-cançonetismo plantando outra forma de ser música no meio das nossas vidas. Outros tempos musicais viriam a seguir, sem que a música deixasse de ser traço da luta de classes, aqui mais atenta, ali mais distraída; aqui mais interventiva ali mais conformada; aqui mais criativa, ali mais clichê. Mas nunca deixou de ser precisa, e cantada, aquela que diz «não há machado que corte / a raiz ao pensamento» ou «eles não sabem que o sonho / é uma constante da vida».

Na campanha de 2019, duas canções mais se acrescentaram ao reportório de chamar às lutas: uma, que diz «somos a vontade de vencer / liberdade é a luz deste farol», que a escreveram João Monge e Paulo de Carvalho – uma mais de muitas outras que o compositor ofereceu às nossas vozes; outra, dizendo «prá frente, minha gente, já cansa como isto está / avançar é preciso, para trás já não dá», que a fez Vasco Nogueira, candidato da CDU pelo círculo de Coimbra, a partir de uma melodia tradicional. Duas mais, cantadas mil vezes nos carros de som que deitam canções como se fossem sementes. Há sempre quem as vá colher.


Manuel Pires da Rocha