Debaixo das arcadas
Eram já os finais do século XIX quando João de Deus escreveu, decerto inspirado pela realidade que ele próprio podia ver, os versos que muitas vezes têm sido citados com maior ou menor fidelidade: «Era já noite cerrada,/dizia o filho p’rà mãe:/ debaixo daquela arcada / passava-se a noite bem!» Os versos indiciam que a pernoita ao ar livre é uma triste tradição lisboeta e decerto não só, acontecendo que por esta altura do ano a televisão costuma trazer a nossas casas imagens que testemunham esse triste facto que de ano para ano se repete. Ainda não sucedeu este ano mas não é tarde, o Outono começou há pouco mais de um mês, e é esperável que uma destas noites voltemos a ver no ecrã do nosso televisor o presidente Marcelo a efectuar uma ronda nocturna junto dos compatriotas sem abrigo e a preconizar, se não a prometer, providências urgentes para que eles tenham um tecto que os proteja pelo menos durante estas noites frias. É certo que, como bem se sabe, o Presidente da República não tem funções executivas, ficando-se pela chamada «magistratura de influência», fórmula que soa bem mas nem sempre funcionará a condizer com o som. De qualquer modo, é provável que os telespectadores mais atentos e também mais solidários fiquem na expectativa de notícias sobre o assunto.
Frio e simpatia
Será porventura ambição excessiva, mas seria desejável que a televisão, ao menos ela, viesse lembrar o assunto a quem tem poderes para o resolver, já que, como bem sabemos, questões destas estão sempre muito expostas ao esquecimento: os negócios do Estado são absorventes, o tempo não dá para tudo e os gabinetes onde as grandes decisões são tomadas estão aquecidos, o que pode favorecer omissões. Por isso, aliás, se compreendem as sortidas noturnas do PR que lhe permitem experimentar na própria pele a mordedura do frio nocturno em pleno Inverno. Estas saídas são, além do mais, ocorrências que dão ensejo a reportagens televisivas breves mas úteis: sem elas, muito provavelmente não lembraria às operadoras de TV mandar para as ruas (com aquele frio, senhores!) equipas de reportagem a vasculharem portais e arcadas. Entretanto, porém, acontecerá que, ano após ano, telespectadores mais atentos e porventura mais solidários aguardem a notícia de estar em curso um conjunto de providências para retirar de arcadas e portais os cidadãos sem tecto. Até lá, restarão porventura as saídas nocturnas de Marcelo Rebelo de Sousa. Que são obviamente simpáticas. Mas, como bem se entende, insuficientes.
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Nota: Esta crónica foi redigida no domingo, antes portanto do assunto que aborda ter voltado à programação. Curiosamente, ou não, nos exactos termos nela previstos.