- Nº 2429 (2020/06/18)

Escravaturas

Argumentos

Durante alguns dias a televisão falou-nos de escravos e de escravaturas: foi a propósito, ou não, de vandalizações de estátuas cometidas em diversos lugares do mundo ainda na sequência do assassínio do afroamericano Floyd sob o joelho de um polícia, crime teletestemunhado quase em directo e que também esta coluna registou. As estátuas derrubadas ou vandalizadas tinham e têm a ver com episódios históricos de diversa índole, pois a escravização tem várias formas e a História abunda no seu variado registo, sendo não obstante praticamente certo que não esgota o seu imaginário inventário. E é possível, quase inevitável, que ao falar-se das escravaturas do passado, as que são lembradas por estátuas de pretéritos escravizadores ou escravizados, pelo menos em certos meios sejam recordadas as escravizações do presente, que não são poucas nem sempre de ligeiro peso, ainda que tenham passado de moda as grilhetas nos pés.

Secreto e informulado

Não é preciso viajar muito, nem no espaço nem no tempo, para encontrarmos formas contemporâneas de escravização ainda que naturalmente adaptadas às condições das sociedades actuais. Percorra-se com olhos de ver e cabeça de entender esta nossa sociedade civilizada e democrática e não demorará que encontremos formas específicas e peculiares de escravatura, a mais óbvia das quais é a remuneração do trabalho prestado com pagamentos muito aquém não apenas do esforço desenvolvido mas também da riqueza por ele produzida. Mas há mais: quando o patronato se esquiva no todo ou em parte aos pagamentos devidos à segurança social, o que ocorre mais frequentemente do que pode supor-se, o que acontece é uma pelo menos parcial redução do trabalhador à condição de escravo em consequência da amputação de um seu importante direito. Sem que se pretenda demonizar todo o patronato, será admissível admitir que para uma parte dele, decerto minoritaríssima e a mais rude, a estrutura social perfeita haveria de garantir uma condição de escravatura para a mão-de-obra necessária ao seu negócio. Não acontece assim: os avanços civilizacionais e a permanente resistência dos trabalhadores impedem-no, mas continuará sempre a haver nostálgicos disso mesmo: da escravização. Ainda que, muitas vezes, nem eles tenham consciência dessa espécie de frustrada saudade de um tempo que nunca existiu mas pode subsistir como desejo secreto e informulado.


Correia da Fonseca