No dia do «Não»
Os franceses disseram «Não» à proposta Constituição europeia, por alcunha «o Tratado Constitucional», e logo os media, aqui com inevitável destaque para a televisão portuguesa, acorreram a dizer-nos que o voto francês não havia sido contra o que estava a ser votado, mas sim contra o governo Chirac/Raffarin, contra a imigração vinda do Leste, contra a projectada admissão da Turquia na Europa já a 25. Assim se insinuou claramente que a Constituição, coitadinha, havia sido uma vítima inocente das circunstâncias. Como se as circunstâncias não tivessem nada a ver com os governos claramente de direita ou de direita de fachada socialdemocrata que as criaram. E, à cautela, os mesmos media vão pondo as barbas de molho na previsão fácil de nova vitória do «Não» no próximo referendo que se realizará na Holanda e talvez no referendo seguinte, na Dinamarca. Feitas as contas, os cruzados pelo «Sim» arriscam-se a chegar ao fim do processo com uma única vitória obtida por via referendária, a conseguida em Espanha com uma taxa de participação escandalosamente baixa. É dramaticamente pouco para quem sonha impor a 25 países uma espécie de ditadura do capitalismo transnacional inscrito «democraticamente» numa Constituição.
Entretanto, no próprio domingo em que os franceses rejeitaram o projecto, a rubrica «Eurodeputados», ao princípio da tarde na «2:», teve como tema de debate o projecto do Tratado que também por cá será votado, pelos vistos, de mistura com as eleições autárquicas, isto é, reduzido a uma condição apendicular, quase de post-scriptum, a ver se assim chama menos as atenções dos cidadãos. No estúdio, como sempre nesta rubrica, estava um deputado por partido com representação em Estrasburgo: Ilda Figueiredo (PCP), Miguel Portas (BE), Luís Queiró (CDS/PP), Assunção Esteves (PSD) e Edite Estrela (PS). De Luís Queiró veio a ironia mais curiosa quando comentou que a sua «voz não chega ao céu», sabendo-se quais são as vozes que não chegam ao céu segundo a sabedoria popular e também que Luís Queiró não dá nenhuns indícios de ser burro. Mas o comportamento que mais me surpreendeu foi o de Assunção Esteves, adiante explico porquê.
«The business must go on»
Assunção Esteves foi, como se sabe, juíza no Tribunal Constitucional, que decerto não é para qualquer uma, além de que tem todo o aspecto de ser uma senhora distinta e educada. Sendo assim, parece-me interessante e porventura sintomático o destempero em que a partir de certa altura se lançou: constantes interrupções estridentes quando Ilda Figueiredo falava, de tal modo que quase impediram por vezes que a ouvíssemos (indelicadeza que, na verdade, também foi em dada altura cometida por Edite Estrela); sorrisos enquanto outros dizem o que não convém que se diga, que é a frequente forma malcriada q.b. usada por figuras da direita quando fala alguém da esquerda, método de recurso de quem não tem melhores argumentos para desvalorizar perante as câmaras os argumentos alheios. Foram atitudes duramente decepcionantes para quem, como eu, esperava dela cousa diversa. Quanto ao que é mais substancial, registe-se como particularmente sintomática a advertência claramente de direita contra «os riscos dos referendos», o que bem traduzido em palavras mais directas significa ser arriscado e inconveniente dar a palavra aos povos em consulta directa. Muito a propósito, veio Ilda Figueiredo lembrar o perfil nada democrático da Convenção que deu à luz o projecto de Tratado Constitucional: uma assembleia de damas e cavalheiros cuidadosamente seleccionados onde, por esclarecedor exemplo, o Parlamento português esteve representado por apenas dois deputados, sendo um do PSD e outro do PS. Com tamanho grau de democraticidade está-se mesmo a ver que nem seria preciso consultar os que vão suportar o preço da factura e, de resto, de acordo com isso, as ratificações até agora conseguidas foram todas apenas em sedes parlamentares, salvo o já referido caso a Espanha. Agora, depois do «Não» francês e na perspectiva dos que se lhe seguirão, há sinais de que nem assim as direitas desistem do essencial do seu projecto e se preparam para contornar obstáculos, apesar de que, segundo o que está acordado formalmente, ele não deveria resistir a uma só recusa sequer. Mas é preciso que não lhes faltemos com a nossa compreensão: tal como dizem os amigos americanos a propósito dos shows, também o big business já engatilhado must go on. Através de tudo e calcando o que for preciso calcar.
Entretanto, no próprio domingo em que os franceses rejeitaram o projecto, a rubrica «Eurodeputados», ao princípio da tarde na «2:», teve como tema de debate o projecto do Tratado que também por cá será votado, pelos vistos, de mistura com as eleições autárquicas, isto é, reduzido a uma condição apendicular, quase de post-scriptum, a ver se assim chama menos as atenções dos cidadãos. No estúdio, como sempre nesta rubrica, estava um deputado por partido com representação em Estrasburgo: Ilda Figueiredo (PCP), Miguel Portas (BE), Luís Queiró (CDS/PP), Assunção Esteves (PSD) e Edite Estrela (PS). De Luís Queiró veio a ironia mais curiosa quando comentou que a sua «voz não chega ao céu», sabendo-se quais são as vozes que não chegam ao céu segundo a sabedoria popular e também que Luís Queiró não dá nenhuns indícios de ser burro. Mas o comportamento que mais me surpreendeu foi o de Assunção Esteves, adiante explico porquê.
«The business must go on»
Assunção Esteves foi, como se sabe, juíza no Tribunal Constitucional, que decerto não é para qualquer uma, além de que tem todo o aspecto de ser uma senhora distinta e educada. Sendo assim, parece-me interessante e porventura sintomático o destempero em que a partir de certa altura se lançou: constantes interrupções estridentes quando Ilda Figueiredo falava, de tal modo que quase impediram por vezes que a ouvíssemos (indelicadeza que, na verdade, também foi em dada altura cometida por Edite Estrela); sorrisos enquanto outros dizem o que não convém que se diga, que é a frequente forma malcriada q.b. usada por figuras da direita quando fala alguém da esquerda, método de recurso de quem não tem melhores argumentos para desvalorizar perante as câmaras os argumentos alheios. Foram atitudes duramente decepcionantes para quem, como eu, esperava dela cousa diversa. Quanto ao que é mais substancial, registe-se como particularmente sintomática a advertência claramente de direita contra «os riscos dos referendos», o que bem traduzido em palavras mais directas significa ser arriscado e inconveniente dar a palavra aos povos em consulta directa. Muito a propósito, veio Ilda Figueiredo lembrar o perfil nada democrático da Convenção que deu à luz o projecto de Tratado Constitucional: uma assembleia de damas e cavalheiros cuidadosamente seleccionados onde, por esclarecedor exemplo, o Parlamento português esteve representado por apenas dois deputados, sendo um do PSD e outro do PS. Com tamanho grau de democraticidade está-se mesmo a ver que nem seria preciso consultar os que vão suportar o preço da factura e, de resto, de acordo com isso, as ratificações até agora conseguidas foram todas apenas em sedes parlamentares, salvo o já referido caso a Espanha. Agora, depois do «Não» francês e na perspectiva dos que se lhe seguirão, há sinais de que nem assim as direitas desistem do essencial do seu projecto e se preparam para contornar obstáculos, apesar de que, segundo o que está acordado formalmente, ele não deveria resistir a uma só recusa sequer. Mas é preciso que não lhes faltemos com a nossa compreensão: tal como dizem os amigos americanos a propósito dos shows, também o big business já engatilhado must go on. Através de tudo e calcando o que for preciso calcar.