Investimentos e fontes da caridade cristã

Jorge Messias

Na Comunidade Europeia e na generalidade dos países capitalistas a Igreja católica e as instituições dela dependentes (sobretudo na área social) funcionam como uma zona franca pronta a receber capitais das mais diferentes origens. Torrentes de dinheiro jorram a todo o momento nos cofres eclesiásticos sem jamais terem passado pelo crivo da fiscalidade. «Nascem solteiras» e solteiras morrem, como por milagre, nas profundezas insondáveis das «contas cifradas» do Banco do Vaticano e dos off-shores cujos «cordelinhos» são manejados pela alta hierarquia católica.

Anteriormente, vimos o caso do «Óbolo de S. Pedro», aparentemente destinado a financiar acções de beneficência da Igreja. Porém, quando estoirou o grande escândalo da falência do Banco Ambrosiano ficou provado, entre outros factos da maior gravidade, que essas reservas tinham servido para apoiar o conspirador polaco Lech Walesa e para comprar uma rede de traidores infiltrados no governo polaco. Muitos outros casos idênticos vieram depois a lume na América do Sul, em Itália, nas áreas mais ricas em matérias-primas de África e da Ásia, nos passos atrás dados na União Soviética e noutros estados socialistas europeus, na história secreta dos capitais especulativos, etc. As altas razões invocadas para a aplicação desta estratégia são sempre as mesmas: combate à pobreza, atenuação do fosso entre ricos e pobres, solidariedade e paz entre os povos, ajuda desinteressada à emancipação dos humildes explorados, reposição dos valores cristãos na vida pública; mão-de-obra não lucrativa e fragilização, em nome da democracia, dos direitos e privilégios dos cidadãos na educação e cultura, na saúde, na justiça, numa palavra, em toda a área onde o «Estado Social» possa intervir.

Dizem os cardeais, acolitados pelos bispos, que para participar num trabalho nacional tão meritório, a Igreja precisa de mais apoios do Estado: mais dinheiro e mais poder. O Vaticano tem outra vocação mais alta e mais além: a de ganhar as almas dos pobres acudindo às suas necessidades primárias. Por isso, na falta de dinheiros subsidiados pelo Estado, precisa de aliar-se aos ricos nas parcerias que faz, com banca e com as fortunas, nas redes lucrativas em que participa e na forma e nos jogos «contranatura» onde se senta à mesa dos privilegiados.

No plano ideológico, dizem os teólogos, há sacrifícios que se impõem. Declarava, nos anos 90 (estava ainda viva a doutrina da Teologia da Libertação) o cardeal De Bonis, um dos mentores do famigerado Banco Ambrosiano e dos off-shores confessionais: «A Igreja deve escolher entre S. Francisco de Assis (o defensor dos pobres) e os negócios (dos ricos)». Porém, afinal de contas, enquanto De Bonis assim falava, o Vaticano já tinha feito a sua escolha. Optou pelos ricos e assim permanece consistentemente.

O «dinheiro em caixa do IOR paralelo (aquele que não presta e nunca prestará contas) é incalculável e dá para comprar estados e mercados. Os grandes grupos bancários funcionam como suas sucursais. As mais gigantescas fortunas pessoais contam-se entre os seus depositantes. Sabe-se (através de dados revelados pelas investigações dos maiores escândalos financeiros) que os depósitos nas reservas do IOR destinadas a «obras de caridade da Igreja» se agrupam em três níveis: o primeiro nível é reservado a fundações fictícias cujas contribuições são alimentadas por altas taxas pagas por políticos e empresários nomeados para cargos cimeiros das esferas políticas e financeiras mundiais. Desta forma e de uma só penada o Vaticano assume um papel condutor na política e na economia mundial. Num segundo nível, as rubricas altamente codificadas organizam-se em carteiras de títulos geridas por uma só individualidade do Conselho Administrativo do IOR. Deste modo, o Vaticano abre-se à cooperação «blindada» com sociedades secretas, como a Máfia, o FMI, a Maçonaria ou a NATO. Finalmente, o terceiro nível de depositantes é constituído por contas em nome de entidades religiosas, congregações ou fundações ligadas a santuários cuja impunidade judicial é garantida pelas concordatas. O Vaticano reforça, deste modo, o controlo sobre os dinheiros da acção caritativa da própria Igreja. E é assim que os tesouros recolhidos em nome do combate à pobreza ou da defesa dos direitos humanos, acabam por vir a alimentar o próprio sistema que promove a pobreza, subsidia as fortunas e serve de sustentáculo aos partidos e grupos políticos mais reaccionários e adeptos a qualquer preço do capitalismo explorador.

Portugal, como se sabe, vive presentemente por entre uma teia de mentiras e a um passo da bancarrota total. Vegeta, sob a alçada de poderes estrangeiros. Se não reagir, o país afundar-se-á e a miséria do povo trabalhador será total. Nesta fase de «crise dos pobres» e que, necessariamente, será curta, o povo limita-se a ser mero espectador da sua própria queda. Olha, como se assistisse a uma telenovela, uma zanga encenada de comadres, um presidente que finge ser nosso Pai e Senhor e o mudo papel de uma Igreja cuja procissão ainda vai no adro mas em breve pisará também o palco para representar, simultaneamente, dois papéis: o do único banqueiro disponível para pagar, em silêncio, o défice do país; e o de divino patrono da paz entre irmãos desavindos, senhor da situação e único poder capaz de emudecer a voz dos explorados e ofendidos.



Mais artigos de: Argumentos

Derrapagens I

O Estado pagou, até ao final do primeiro trimestre deste ano, 888 milhões de euros em encargos com as parcerias público-privadas – obras que os privados constroem e que o Governo vai depois pagando ao longo dos anos. Trata-se de um aumento superior a 18% em relação ao que estava...

Os lugares tristes

Eram lugares acanhados e propositadamente sombrios para que a penumbra encobrisse os rostos envergonhados que se abeiravam dos balcões velhos. Eram as chamadas «casas de prego», muito em voga nos anos do fascismo de que alguns exprimem hoje inconsoláveis saudades. Ali acorriam, tristonhos, os...

O mercado da política

Aqui há duas semanas, houve em Madrid umas eleições «primárias» dentro do PSOE, para designar o candidato que se vai enfrentar à actual presidente da Região Autónoma de Madrid, desde há largos anos membro do PP (sector extrema direita), Esperanza...