Para que a verdade não morra

Albano Nunes (Membro do Secretariado)

Escrever neste momento sobre a escalada de confrontação na Península da Coreia é a vários títulos um risco, mas um risco que é necessário correr. A escalada de acusações, ameaças e movimentações militares, sendo infelizmente recorrente na região, atingiu uma tal dimensão, que a situação pode ficar fora de controle e conduzir à guerra.

Os EUA são os grandes responsáveis pela situação na Península da Coreia

Image 12959

Como de costume, estamos confrontados com um quadro mediático em que o dedo acusador é apontado apenas a uma parte, a República Democrática Popular da Coreia, enquanto os EUA são descritos como impolutos guardiões da legalidade internacional (que, como se viu no Iraque ou se vê hoje na Síria, constantemente tripudiam) e dos direitos humanos (cujo apego pode medir-se pelos centros secretos de tortura que espalharam pelo mundo ou pela sua política de extermínio «selectivo» com os sofisticados drones). Este maniqueísmo que lança uma densa cortina de fumo sobre a realidade tem de ser frontalmente contrariado. O que está em causa é demasiado sério para deixar campo livre aos mesmos que venderam as montanhas de mentiras que serviram de pretexto para a guerra à Jugoslávia, a invasão do Iraque ou a destruição da Líbia, e que, como se vê em relação a Israel, que tem a arma nuclear e ameaça utilizá-la, têm pesos e medidas diferentes para julgar países na sua relação com a questão nuclear.

Isto não exclui preocupações com o modo como os dirigentes da RDPC têm lidado com as ameaças à sua segurança, por muito que julguem que a exibição de força e a retórica militarista tenham objectivos dissuasores e visem pesar na mesa de negociações. Há actos e afirmações que justificam preocupação e que, aliás, estão a ser utilizados para tentar isolar a RDPC e justificar o reforço militar norte-americano na região. Os dirigentes norte-coreanos cometeriam um grave erro se não dessem ouvidos aos apelos à contenção, sobretudo quando eles provêm, como no caso da China e de Cuba (com o veemente apelo de Fidel de Castro), de amigos e aliados empenhados no respeito pela soberania e integridade territorial da RDPC.

Mas seja qual for a opinião sobre as razões e o modo como os dirigentes norte-coreanos estão a lidar com a situação, importa não perder de vista o essencial, situar a perigosíssima escalada de tensão actual no seu contexto histórico e enquadramento internacional e trazer para o primeiro plano da luta das ideias questões que têm sido secundarizadas e mesmo ignoradas pela comunicação social.

Olhar para o essencial

Por exemplo, que o povo coreano nunca ocupou outro país mas conheceu a terrível ocupação japonesa (1910/45), sofreu milhões de mortos na guerra imperialista de 1950/53 e luta há sessenta anos pela reunificação independente e pacífica da sua pátria. Ou o facto de os EUA manterem na região um impressionante dispositivo militar hostil à RDPC e realizarem periodicamente, como agora até ao fim de Abril, manobras militares que são autênticos ensaios de guerra. Ou ainda, em recente artigo de Gareth Evans, ex-MNE da Austrália e Presidente do Grupo Internacional de Crise, a confirmação da má fé dos EUA e seus aliados no importante acordo de 2004 com a RDPC sobre as instalações nucleares de Yongbyon: «arrastámos os pés na construção de reactores nucleares e na entrega do prometido fuelóleo pesado, em parte devido a uma crença generalizada de que o colapso do regime estava eminente» (Público de 20.02.13), confissão que mostra a confiança que merece a palavra do imperialismo.

Mas é necessário ir ainda mais longe e apontar sem rodeios os EUA como o grande responsável pela perigosa situação criada e denunciar a sua estratégia de tensão numa região da mais alta importância geo-política, estratégia que visa alimentar uma das maiores concentrações de armamento do globo, historicamente orientada contra a URSS (hoje contra a Rússia) e contra a China, país que os EUA apontam cada vez mais abertamente como «adversário estratégico». Trata-se de denunciar a aceleração da militarização do Pacífico, a Norte e a Sul, efectuada em ligação com o relançamento do militarismo japonês. Trata-se de alertar para que, a pretexto da «ameaça norte-coreana» os EUA, que já aí têm armamento nuclear, estão a deslocar para a região sistemas anti-míssil, bombardeiros nucleares, drones e outros sofisticados meios militares.

A gravidade da situação não consente distração do essencial: a política militarista agressiva do imperialismo. A profundidade da crise do capitalismo traz no seu bojo tentações aventureiras a que é necessário dar firme combate, desde logo no plano das ideias. Se numa guerra a verdade é a primeira coisa a morrer, tudo faremos para que ela não morra.



Mais artigos de: Opinião

O «paradigma»

Ao tomar posse, Passos Coelho disse: «vamos criar em Portugal um novo paradigma». Ele aí está, o paradigma: miséria generalizada nos desempregados e reformados – ambos aos milhões, nenhum a descortinar como sobreviver no dia a dia, todos lançados na...

As reacções da <i>reacção</i>

A importante derrota imposta ao Governo e à sua política pela decisão do Tribunal Constitucional – que decretou a inconstitucionalidade de quatro artigos do Orçamento do Estado – determinou uma inaceitável operação de pressão e chantagem sobre o povo e o...

Farsa em três actos

O Governo reagiu ao chumbo de medidas do Orçamento do Estado pelo Tribunal Constitucional com uma dramática encenação, desta feita em três actos, tão grotesca que seria hilariante se não fosse trágica a situação do País. O primeiro acto...

De quem é a culpa?

Passos Coelho, o seu Governo e os partidos da direita que lhe estão na origem apesar de se arrogarem de democratas, deixaram mais uma vez bem claro que não suportam a democracia e não conseguem conviver com o normal funcionamento das instituições. O discurso do primeiro-ministro,...

Armas e terror

Enquanto na ONU votam um Tratado alegadamente para controlar o comércio de armas, as principais potências imperialistas asseguram uma «catarata de armas» para os rebeldes sírios, através duma «ponte aérea secreta» que «começou em pequena escala no...